CONCÍLIO VATICANO II: IDEIAS-CHAVE

24 de Novembro de 2025

"CONCÍLIO VATICANO II: IDEIAS-CHAVE"

    Nos últimos meses escrevi sobre o documento Dei Verbum do Concílio Vaticano II sobre a Palavra de Deus, na perspectiva proposta pelo papa Francisco para o ano jubilar da esperança.  Algumas ideias-chave podem nos ajudar a continuar nossa reflexão e, o que é mais importante, vivermos o espírito do Concílio no momento presente, cada vez mais fiéis ao Evangelho de Jesus e à sua Igreja, mistério de comunhão e sacramento de salvação.

    O Concílio provocou uma profunda transformação na visão de Igreja, com sua eclesiologia (reflexão teológica sobre a Igreja) de comunhão, compreendendo a Igreja como Povo de Deus. Sobretudo a partir do século XI, a Igreja foi sendo cada vez mais identificada com o clero: diáconos, padres e bispos, unidos ao papa. Esta situação se agravou com a Contra-Reforma, a Igreja que saiu do Concílio de Trento (1545-1563) como resposta à reforma protestante. Para se ter uma ideia, o documento final deste Concílio, embora enorme, reserva poucas linhas sobre os leigos e, nelas, trata-se antes de tudo da responsabilidade pela manutenção da Igreja. Era uma concepção hierárquica e clerical. Afirmava-se o aspecto visível, social e jurídico da Igreja. A maioria dos bispos que chegou para o Concílio Vaticano II havia sido formada e atuava com esta eclesiologia. Porém, no decorrer do Concílio, com os debates, estudos e encontros extras, um pequeno grupo de bispos conseguiu ser fermento do novo nessa massa.

    Os movimentos - bíblico, patrístico, litúrgico e ecumênico - haviam recuperado ao longo do século XX uma fundamentação eclesiológica mais aderente a Jesus e aos Evangelhos. A Igreja assume, nesta eclesiologia, uma estrutura colegial a partir da colegialidade dos bispos unidos ao papa. Aparece como mistério ou sacramento de salvação em sua caminhada histórica. Emerge a figura da Igreja como Povo de Deus a caminho da pátria definitiva. Neste contexto, os leigos ganham relevância.

    Basta-nos um exemplo. A Lumen Gentium, Constituição Dogmática sobre a Igreja (LG), inicia afirmando a Igreja como povo reunido na unidade trinitária e a descreve não em termos jurídicos, mas utilizando imagens bíblicas: redil, grei, lavoura ou campo de Deus, construção, “Jerusalém celeste” e “nossa mãe”, esposa do Cordeiro, mas, sobretudo, Corpo Místico de Cristo (LG cap.I) e Povo de Deus (LG cap.II). E inverte uma tendência comum até então: antes da hierarquia, apresenta o que tem em comum todos os seus membros, ou seja, os sacramentos da iniciação cristã (batismo, crisma e eucaristia). E fundamentado no batismo, o sacerdócio comum dos fiéis. Somente após tratar o que é comum a todos os membros do Povo de Deus, a LG trata do sacerdócio ordenado. E o apresenta não como privilégio, mas como ministério, ou seja, serviço (LG cap.III).

    “A índole sagrada e orgânica da comunidade sacerdotal efetiva-se pelos sacramentos e pelas virtudes. Os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo, são destinados pelo caráter batismal ao culto da religião cristã e, regenerados para filhos de Deus, devem confessar diante dos homens a fé que de Deus receberam por meio da Igreja. Pelo sacramento da Confirmação, são mais perfeitamente vinculados à Igreja (...). Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica. Além disso, alimentados pelo corpo de Cristo na Eucaristia, manifestam visivelmente a unidade do Povo de Deus, que neste augustíssimo sacramento é perfeitamente significada e admiravelmente realizada” (LG 11).

    Neste parágrafo da LG já emergiu nosso segundo elemento: uma nova compreensão da liturgia da Igreja. Há uma relação muito estreita entre o modelo de Igreja e o modelo de celebração. Conforme se concebe a Igreja, se celebra. O inverso também é verdadeiro, conforme se celebra se gera um modelo eclesial e comunitário determinado. Ao longo do segundo milênio tinha-se configurado um modelo de celebração pautado pelo seu aspecto jurídico e canônico, centrado no ministério ordenado. A vida litúrgica pertencia basicamente à hierarquia. Rezava-se pelos fiéis. A estes, sobrava “assistirem” às celebrações. Sobretudo as celebrações eucarísticas. Nem mesmo a comunhão era recebida na missa, mas fora dela. E raramente se comungava. Se não bastasse ser em uma língua incompreensível para a grande maioria, determinadas partes, como a oração eucarística, eram feitas em voz baixa.

    A partir do início do século XX essa realidade começará a mudar. Haverá uma intensa busca de compreender a liturgia e de renová-la, inspirando-se nos cristãos dos primeiros séculos. Este empenho que envolverá estudiosos e pastores de vários países ficará conhecido como movimento litúrgico. Os papas não ficarão alheios a este fermento da base. Gradualmente irão incorporando aquelas experiências mais maduras. Quando o Concílio se reúne, já há largo consenso nas questões básicas da renovação litúrgica. Para se ter uma ideia, dos 72 documentos preparatórios para o Concílio, o único aprovado foi o da liturgia. Foi também o primeiro. A vida litúrgica da Igreja deixa de ser privilégio do clero que os leigos, meros detalhes, “assistiam”.  O Concílio entendeu a Igreja, Povo de Deus, como sujeito da liturgia, onde todos, cada um a seu modo, participa ativamente. Este é o eixo da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia (SC). À predominância do aspecto jurídico e canônico se acrescenta a necessidade de compreensão e participação de todos os fiéis; à dimensão objetiva, a subjetiva.

    “Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente” (SC 11).

    Esta participação ativa será reiteradamente indicada pelo Concílio. Também será tomada como critério para o futuro: “Na reforma e incremento da sagrada Liturgia, deve dar-se a maior atenção a esta plena e ativa participação de todo o povo porque ela é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão. Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo empenho, através da devida educação” (SC 14). O liturgista italiano Andrea Grillo escreveu a este propósito: “O ter deixado uma leitura clerical da Igreja e da liturgia faz com que se exija uma eclesiologia que tenha verdadeiramente amadurecido a novidade conciliar mais surpreendente: isto é, a ‘participação ativa’ de todo batizado à liturgia da Igreja à qual pertence.” (Ritos que educam. Brasília: Ed. CNBB, 2017, p.25). É na continuidade deste espírito do Concílio e o alargando a toda a vida da Igreja, o empenho do papa Francisco, mantido pelo papa Leão XIV, pela sinodalidade.

    Por fim, para recuperar esta eclesiologia de comunhão que propõe uma participação consciente e ativa de todos os fiéis, o Concílio (SC 50) assumiu do movimento litúrgico a volta às fontes, ou seja, aos Santos Padres (no Ocidente, mais ou menos do início do cristianismo até o século VII). Não como quem vai ao museu, mas como quem bebe a água limpa da nascente. Não é mera arqueologia, mas inspiração. As três ideias-chave: Igreja Povo de Deus; participação ativa e consciente de todos e volta às fontes.


Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo