CELEBRANDO A SEXTA-FEIRA SANTA EM JERUSALÉM NO SÉCULO IV

09 de Abril de 2025

"CELEBRANDO A SEXTA-FEIRA SANTA EM JERUSALÉM NO SÉCULO IV"

A celebração da Vigília Pascal no Sábado Santo é a principal celebração para o cristão. Não obstante, temos um apego com a Sexta-Feira Santa. A paixão e morte de Cristo nos envolve emotivamente. Entre os vários ritos, o beijo da cruz é particularmente envolvente. Já no IV século temos um testemunho deste rito. Vale a pena lembra-lo. Neste século, o cristianismo passou por uma transformação incrível, principalmente junto aos pagãos. De religião perseguida, a religião oficial do Império. De religião de minorias, para religião de massas. A cruz, enquanto instrumento e o sinal da cruz, enquanto marca permanente ou desenho imaginário na testa, no rosto ou em sua forma mais ampla, esteve no centro dessas mudanças. De instrumento de tortura e execução, para sinal de nossa salvação. O símbolo da cruz ocupou um lugar de destaque na vida do imperador Constantino e, por extensão, em todo o Império.

         A descoberta dos lugares sagrados para o cristianismo tem uma ligação com a mãe do imperador, Santa Helena, que, mesmo idosa, fez uma expedição à Terra Santa, localizando alguns desses lugares e ajudando a divulgá-los. Também erguendo ali basílicas. Por causa desta "peregrinação", contada, por exemplo, por Eusébio de Cesareia em Vida de Constantino (III,42-47), teve seu nome ligado pela tradição à descoberta da cruz na qual foi crucificado Cristo. A peregrinação de Santa Helena deve ter acontecido entre 326 e 330. Mas nenhum dos testemunhos que temos mencionam exatamente a descoberta da cruz. Encontramos, por outro lado, um testemunho forte sobre a cruz nas Catequeses de Cirilo, bispo de Jerusalém, que foram proferidas, com toda probabilidade, ente 348 e 350. Os investigadores datam, em consequência, o achado da Vera Cruz, ou seja, da verdadeira cruz de Cristo, por volta de 340. Na verdade, o que se encontrou foi o patíbulo, ou seja, a trava horizontal.

         O encontro da cruz de Cristo, no clima fervoroso deste século, gerou imediatamente uma devoção a, agora, "Santa Cruz". Dedicou-se uma festa litúrgica de Exaltação da Santa Cruz, no dia 14 de setembro, dia da consagração da Igreja do Santo Sepulcro. Festa mantida ainda hoje pela Igreja Católica, ortodoxa e por algumas denominações protestantes. Também na celebração da Sexta-Feira da Paixão a cruz assumiu um significado litúrgico novo. O encontraremos nos relatos de Egéria. Este patíbulo foi "despedaçado" em relíquias: um pedaço ficou em Jerusalém e outros foram para Constantinopla e Roma. Mas já Cirilo, que dedica uma catequese para os catecúmenos sobre a cruz, afirma que tem pedaços espalhados pelo mundo. Estando próximo do local da crucificação, Cirilo diz que este Gólgota o questiona:

          "...argúi-me o lenho da cruz, que dividido em partículas foi levado para todo o mundo. Confesso a cruz, pois conheço a ressurreição. Se tivesse permanecido crucificado, talvez não a confessaria. Escondê-la-ia depressa com meu mestre. Mas, uma vez que à cruz segue a ressurreição, não me envergonho de pregar a cruz". (Catequeses pré-batismais XIII, 4)

         Sobre esta devoção à cruz de Cristo na liturgia da Sexta-Feira Santa, temos um testemunho muito interessante de Egéria, que em peregrinação à Terra Santa, participou das celebrações em Jerusalém e a descreveu em seu diário de viagem: "E assim, põe-se uma cadeira para o bispo no Gólgota, atrás da Cruz, que agora está fixada; o bispo senta-se na cadeira; é posta diante dele uma mesa coberta com pano de linho; os diáconos ficam em pé em volta da mesa, e é trazido um relicário de prata dourado, no qual está o santo lenho da cruz; o relicário é aberto e exposto, e põe-se na mesa tanto o lenho da cruz quanto a inscrição" (Peregrinação de Egéria 37,1). A inscrição poderia ser a placa com os motivos da crucificação (Mt 27,37). Egéria continua:

         "Depois de ter sido colocado na mesa, o bispo, sentado, aperta com as suas mãos as extremidades do santo lenho; por sua vez, os diáconos que estão de pé ao redor vigiam. De fato, este é assim vigiado porque é costume que, vindo um a um, todo o povo, tanto os fiéis quanto os catecúmenos, inclinem-se à mesa, beijem o santo lenho e sigam adiante. E porque se diz alguém ter cravado, não sei quando, uma mordida, e ter roubado um pedaço do santo lenho, por isso ele agora é guardado pelos diáconos, os quais ficam em pé à volta, para que ninguém, ao chegar perto, ouse novamente proceder assim.

         E assim, pois, todo o povo passa, um por um, todos se inclinando, primeiro tocando com a testa e depois com os olhos, a cruz e a inscrição, e assim beijando a cruz, passam adiante, porém ninguém põe a mão para tocá-la" (Peregrinação de Egéria 37,2-3).

         Egéria deve ter participado das celebrações presididas pelo bispo sucessor de Cirilo, João de Jerusalém. Quando pensamos que eles estavam ali, no lugar da crucificação, seu testemunho adquire um significado ainda mais emblemático. Diz Cirilo: "Estendeu os braços na cruz, para abarcar os extremos da terra. O Gólgota, aqui, é o centro da terra" (Cat. XIII, 28). Insiste em algumas questões: a salvação que Cristo nos trouxe passa pela cruz, mas a própria cruz é mais vista como troféu, como glória, que como padecimento: "A coroa de glória da cruz iluminou todos os cegos na ignorância, libertou todos os que estavam amarrados pelo pecado e remiu todo o mundo dos homens" (Cat. XIII,1). Frente aqueles que argumentam contra os cristãos por causa da vergonha da cruz, Cirilo exorta os catecúmenos:

"Pega pela mesma cruz as armas contra os inimigos. Fixa a fé na cruz como troféu contra aqueles que a contradizem. Sempre que quiseres começar uma discussão a favor da cruz de Cristo contra os infiéis, primeiro faze com a mão o sinal da cruz de Cristo e o adversário se calará. Não te envergonhes de confessar a cruz. Pois os anjos se gloriam, dizendo: Sabemos que buscais Jesus, o crucificado. Não poderias ter dito, ó anjo: Sei que buscais o meu Senhor? Todavia diz ele com ênfase: Eu sei: o crucificado. A cruz é coroa, não vergonha!" (Cat. XIII, 22).

Aceitar que Deus assumiu verdadeiramente a natureza humana, “esvaziando-se” de si mesmo e morrendo na cruz foi um drama que já São Paulo teve que trabalhar. Muitos procuraram fugir dessa incômoda situação, ou diminuindo sua significação ou mesmo negando-a. Cirilo reage com determinação a estas posturas: "Toma por fundamento inamovível a cruz e constrói sobre ele a fé. Não renegues o Crucificado. Se o negares, terás muitos acusadores" (Cat. XIII, 38). "Foge de quem afirma que a cruz foi somente uma quimera. Aborrece quem diz que [Cristo] foi crucificado em aparência. Pois, se foi crucificado em aparência, e da cruz vem a salvação, também a salvação é aparente. Se aparente é a cruz, igualmente a ressurreição é aparente. Se  Cristo não ressuscitou, ainda estamos em nossos pecados. Se fantasia foi a cruz, fantasia é também a ascensão. E se fantasia foi a ascensão, fantasia também é a segunda vinda, e todo o resto fica sem fundamento" (Cat. XIII, 37).

         Para terminar, um texto de Cirilo que mostra como o uso do sinal da cruz era já um costume generalizado entre os cristãos de Jerusalém, algo muito semelhante ao testemunho de Tertuliano para a África de quase dois séculos anteriores:

"Não nos envergonhemos, pois, de confessar o Crucificado. Na fronte com desassombro façamos com os dedos o sinal da cruz, e tracemos a cruz em tudo: sobre o pão que comemos, sobre o cálice que bebemos; à saída e à volta; antes de dormir; ao deitar e ao levantar; ao andar e ao descansar. É uma grande proteção: gratuita, por causa dos pobres; fácil, por causa dos fracos. De Deus vem a graça. A cruz é o sinal dos crentes e o terror dos demônios, pois os expôs publicamente à vergonha, arrastando-os em cortejo triunfal. Quando vêem a cruz, lembram-se do Crucificado. Temem quem esmagou as cabeças do dragão. Não desprezes, por ser gratuito, este sinal; antes por este motivo honra tanto mais o benfeitor" (Cat. XIII, 36).

(Este texto, com algumas modificações, apareceu em: BELINI, L. A. O sinal da cruz e a cruz do sinal. São Leopoldo, RS: OIKOS, 2024, p.100-103).



Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo