NOSSAS LITURGIAS SÃO INICIADORAS?

06 de Agosto de 2024

"NOSSAS LITURGIAS SÃO INICIADORAS?"

Nos últimos anos temos concentrado nossos esforços pastorais na Iniciação à Vida Cristã: como receber e introduzir os novos membros na comunidade eclesial, corpo místico de Cristo. É uma resposta aos grandes projetos de evangelização do novo milênio e também a uma nova situação sociorreligiosa. As famílias, cada vez mais, por variados motivos, deixam de pedir o batismo para seus filhos recém-nascidos. Quando jovens ou adultos, eles mesmos fazem essa opção. Cabe à Igreja recebê-los e iniciá-los de forma adequada.

Este novo modo de proceder na Iniciação Cristã, que por outro lado se inspira profundamente na Igreja dos primeiros séculos, contempla de modo diferente duas situações: para as famílias que pedem o batismo para seus filhos recém-nascidos, a principal mudança está no modo de preparar a recepção do sacramento. As paróquias estruturadas em comunidades, nas quais há um envolvimento das famílias dos que serão batizados, buscam superar os chamados “cursinhos de batismo”, para uma vivência mais plena e eclesial do sacramento. O Concílio Vaticano II (1962-1965), que incentivou a recuperação do Catecumenato, também proporcionou a elaboração de um Ritual de Batismo de Crianças pela primeira vez na história. Até então, as crianças eram batizadas com o ritual dos adultos, embora fossem a enorme maioria. A principal novidade ficou por conta da iniciação cristã de adultos. Não mais iniciados seguindo os mesmos parâmetros da iniciação de crianças, mas como convém a adultos. Também a pedido do Concílio, foi elaborado um ritual apropriado, o Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA).

Embora em estágios diferentes, as paróquias tem caminhado em sua implantação. Não é apenas um novo método. Implica em um modo de ser e compreender a própria Igreja. Ao refletirmos como iniciar no mistério da Igreja um novo membro, acabamos por nos questionar quanto à própria compreensão de Igreja. Somente uma Igreja “em saída” e “acolhedora” Inicia. Não é apenas uma nova pastoral, é uma renovação eclesiológica. O esforço por uma Igreja compreendida como rede de comunidades e sinodal está no espírito de uma Igreja iniciadora.

“A saúde espiritual de uma comunidade cristã está estreitamente ligada a uma sã e correta iniciação cristã” (CODINA, V.; IRARRAZAVAL, D. Sacramentos de Iniciação: Água e Espírito de Liberdade. Petrópolis: Vozes, 1988, p.47).

         Quando no início do século XX se redescobriu o catecumenato dos primeiros séculos, foi inspirador, sobretudo por três características: envolvia o iniciando por inteiro; o introduzindo em uma comunidade cristã; e em etapas que permitiam a maturação desse novo modo de vida que é a vida cristã, naquele caso, no seio de uma sociedade pagã.

Nos últimos tempos, particularmente, tinha-se acostumado a pensar a recepção dos sacramentos da iniciação, batismo, confirmação e eucaristia, como uma realização pessoal, individual, ainda que acontecesse em uma Igreja paroquial. A preparação, quando existia, era quase exclusivamente intelectual, doutrinal. Pior ainda, às vezes voltada apenas para a memorização de perguntas e respostas. A dimensão existencial estava restrita a aprendizagem dos mandamentos e normas morais básicas.

O Catecumenato antigo, por sua vez, contemplava uma tríplice dimensão, das quais, a catequese era apenas uma delas, e, mesmo assim, não estava desvinculada das outras. A catequese acontecia de forma privilegiada no contexto celebrativo (por isso, chegaram até nós, principalmente, homilias catecumenais). A Palavra de Deus era explicada contemplando a vida e a sociedade dos catecúmenos. Não eram raciocínios abstratos e sem contato com a sua realidade. A iniciação cristã acontecia iniciando liturgicamente. Celebrar não era um algo a mais. O catecúmeno aprendia a celebrar celebrando. Para nós, isso pode soar estranho. Por séculos nos acostumamos a um modo de ser Igreja em que apenas o padre celebrava. Os fiéis “assistiam”. Este modo de ser Igreja exige tempo. Por isso, o catecumenato era um processo, estruturado em etapas de amadurecimento na vivência da fé. Um caminho. Expressamos atualmente essa caminhada catecumenal com o termo itinerário, apropriado, porque se sabe de onde se está partindo e aonde se quer chegar, bem como o caminho a percorrer.

Em síntese, as três novidades que julgo relevantes na Iniciação à Vida Cristã com inspiração catecumenal são: contemplar a pessoa, ou seja, o iniciando, por inteiro, em suas dimensões intelectual (catequese), ascética-penitencial (existencial e ética) e ritual (litúrgica); quem inicia e incorpora o iniciado é a comunidade cristã; por fim, a compreensão deste processo como itinerário, dando o tempo necessário para a incorporação existencial do modo de vida cristã, sem desprezar nenhuma etapa e valorizando cada esforço.

“O catecumenato é aquele processo graças ao qual se torna cristão através de um aprendizado global da fé e vida cristã. Desenvolvido em etapas, este se caracteriza como um itinerário catequético, litúrgico, ascético-penitencial que, vivido em uma comunidade eclesial, se conclui com a celebração do batismo, confirmação e eucaristia e com a plena inserção na Igreja” (CAVALLOTTO Catecumenato Antico, p.15)

          O perigo que podemos correr nesse processo de iniciação é entendê-lo a partir de nossos velhos hábitos, simplesmente como mais uma opção pastoral. Uma espécie de catequese para adultos com algumas celebrações específicas. No final, teríamos adultos “competentes” intelectualmente para a recepção dos sacramentos, mas sem serem verdadeiramente iniciados à vida cristã da comunidade eclesial. Receberiam os sacramentos e continuariam a participar eventualmente de alguma celebração. O que se pretendia superar retornaria com uma roupagem nova.

         A esta altura, podemos nos colocar novas perguntas: nossa eclesiologia, ou seja, nossa “compreensão da Igreja”, é adequada para a Iniciação à Vida Cristã com inspiração catecumenal? Nossas liturgias são iniciadoras? Alimentam a fé e a vida dos iniciados?

         Somos “filhos” do Concílio Vaticano II, que levou à termo o projeto do Concílio de Trento (1545-1563) de “voltar às fontes” também na liturgia e recomendou a restauração do catecumenato dos adultos dividido em etapas (Sacrosanctum Concilium n.64), podendo inclusive aproveitar elementos culturais diferentes nas terras de missão, desde que pudessem ser acomodados ao rito cristão (n.65). A renovação da liturgia assumida pelo Concílio, mas fruto do movimento litúrgico que envolveu a Igreja desde o início do século XX, propiciou e foi dialeticamente propiciada por uma nova eclesiologia, apresentada em sua Constituição Dogmática Lumen Gentium.

“Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta da compreensão teológica da Liturgia e da sua importância na vida da Igreja: os princípios gerais enunciados pela Sacrosanctum Concilium, tal como foram fundamentais para a intervenção da reforma, assim o continuam a ser para a promoção daquela participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração, ‘primeira e indispensável fonte na qual os fiéis podem haurir o genuíno espírito cristão’ (Sacrosanctum Concilium n. 14; veja-se também o n.11)” (FRANCISCO, Desiderio desideravi: Sobre a formação litúrgica do povo de Deus, n.16)

         O objetivo é que todos, catecúmenos e fiéis, possam alimentar sua vida de fé por uma participação “plena, consciente, ativa e frutuosa” de toda a liturgia da Igreja.


Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo