A água do batismo, além de símbolo de vida e de purificação, evoca também a ideia de morte. Este último símbolo talvez não seja tão expressivo para todos nós atualmente. Não obstante, com a crise ecológica e os eventos climáticos extremos, para muitas pessoas que habitam em lugares de risco, a água é também fonte de preocupação e medo. No mundo antigo havia algo mais. Acreditava-se popularmente que potências maléficas habitassem nas águas. Eram responsáveis pelas tempestades mortais no mar ou pelas ondas devastadoras das torrentes que irrompiam no deserto repentinamente nos leitos secos, algo parecido com as nossas “trombas-d’ água” nas cabeceiras dos rios. Cirilo de Jerusalém, em uma de suas catequeses nos dá uma ideia desta crença, evocando o livro de Jó (40,1ss) e o aplicando ao batismo:
“Por isso Jesus foi batizado para que, doravante, pela comunhão na mesma realidade, recebamos a dignidade da salvação. O dragão das águas, do qual se fala em Jó, recebia o Jordão em sua boca. Como as cabeças dos dragões deviam ser esmagadas, Cristo desceu às águas e amarrou o forte, a fim de recebermos o poder de pisar sobre serpentes e escorpiões. De modo algum era pequena a fera, mas horrorosa. Qualquer navio de pesca não podia carregar uma só escama de sua cauda. Diante dele corria a perdição, contagiando aos que encontrava. Mas apareceu a vida para que a morte fosse sustada e todos nós que conseguimos a vida pudéssemos exclamar: Onde, ó morte, está o teu aguilhão? Onde, ó inferno, está a tua vitória? Pelo batismo foi destruído o aguilhão da morte” (Catequeses Pré-Batismais III,11).
Isto nos ajuda a entender a linguagem dos evangelistas quando afirmam que durante uma tempestade no mar da Galileia Jesus “ameaçou” os ventos e o mar e tudo se acalmou (Mt 8,26 e par.). Também entre os primeiros formulários de bênçãos da água batismal encontramos exorcismos. Pedro Crisólogo (meados do século V), após lembrar passagens do Antigo Testamento sobre a ação da água na criação e no dilúvio, dirige uma súplica a Deus para que o Espírito fecunde a água batismal e, em seguida, a exorcisa, pedindo ao Senhor que afaste da fonte todo espírito impuro, para que “ele não venha às escondidas, não introduza aí germes de corrupção” (Pedro Crisólogo, Serm. 117). Também no Ocidente se procede assim. Podemos ler em Ambrósio de Milão: “De fato, primeiro entra o sacerdote, faz o exorcismo sobre a criatura que é a água, depois faz a invocação e a prece para que a fonte fique santificada e aí esteja a presença da Trindade eterna” (Sobre os Sacramentos I,18).
Paulo vivenciou esta experiência da água como agente de morte. Narrando os perigos pelos quais passou por causa de sua missão, afirma: “... três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite em alto mar. Fiz muitas viagens. Sofri perigos nos rios...” (2Cor 11,25-26). Embora Paulo nunca descreva o rito do batismo, é ele quem elabora nossa primeira teologia batismal. Sua teologia está alicerçada em duas afirmações: a morte salvífica de Cristo e sua ressurreição. O batismo é participação na morte de Cristo e em sua ressurreição.
“Vocês não sabem que todos nós, que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Pelo batismo fomos sepultados com ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova”(Rm 6,3-4)
Paulo aplica ao batismo a sequência que encontramos no mistério pascal: Cristo morreu, foi sepultado e ressuscitou. O batismo significa morte para o pecado e nascimento para uma vida nova:
“Sabemos muito bem que o nosso homem velho foi crucificado com Cristo, para que o corpo de pecado fosse destruído e assim não sejamos mais escravos do pecado. De fato, quem está morto, está livre do pecado. Mas, se estamos mortos com Cristo, acreditamos que também viveremos com ele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado dos mortos, não morre mais; a morte já não tem poder sobre ele. Porque morrendo, Cristo morreu de uma vez por todas para o pecado; vivendo, ele vive para Deus. Assim também vocês considerem-se mortos para o pecado e vivos para Deus, em Jesus Cristo”(Rm 6,6-11). “Com ele, vocês foram sepultados no batismo, e nele vocês foram também ressuscitados mediante a fé no poder de Deus, que ressuscitou Cristo dos mortos” (Col 2,12).
Esta teologia paulina que liga o batismo com o mistério pascal era já patrimônio da Igreja apostólica, como ele mesmo afirma ao transmitir o núcleo do Credo em Primeira Coríntios: “eu lhes transmiti aquilo que eu mesmo recebi, isto é: Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; Ele foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras” (1Cor 15,3-4). Esta sequência tripartida dos evangelhos irá permanecer na teologia batismal. O Concílio Vaticano II irá retomá-la: “Assim, pelo Batismo os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo: com Ele mortos, com Ele sepultados, com Ele ressuscitados” (Sacrosanctum Concilium 6).
Não obstante a força e expressividade desta teologia paulina, ela permanecerá secundária nos primeiros séculos da Igreja. O que estará em evidência será a teologia joanina do batismo como “novo nascimento” estilizada na resposta de Jesus a Nicodemos: “Eu garanto a você: ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nasce da água e do Espírito” (Jo 3,5). Mas no século IV ela irá se tornar predominante. Não por acaso, o primeiro que irá colocar em destaque o batismo como sepultura com Cristo será Cirilo de Jerusalém, que pronuncia suas homilias catequéticas diante do sepulcro do Senhor. Esta proximidade física permitirá colher com realismo a espiritualidade pascal na linha paulina.
“Depois disto fostes conduzidos pela mão à santa piscina do divino batismo, como Cristo da cruz ao sepulcro que está à vossa frente. E cada qual foi perguntado se cria no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. E fizestes a profissão salutar, e fostes imersos três vezes na água e em seguida emergistes, significando também com isto, simbolicamente, o sepultamento de três dias de Cristo. (...) E no mesmo momento morrestes e nascestes. Esta água salutar tanto foi vosso sepulcro como vossa mãe.
Oh! fato estranho e paradoxal! Não morremos em verdade, não fomos sepultados em verdade, não fomos crucificados e ressuscitados em verdade. A imitação é uma imagem; a salvação, uma verdade. Cristo foi crucificado, sepultado e verdadeiramente ressuscitou. Todas estas coisas nos foram agraciadas a fim de que, participando, por imitação, de seus sofrimentos, em verdade logremos a salvação. Oh! amor sem medida! Cristo recebeu em suas mãos imaculadas os pregos e padeceu, e a mim, sem sofrimento e sem pena, concede graciosamente por esta participação a salvação” (Catequeses Mistagógicas II,4-5)
Nesta homilia, Cirilo nos transmite o essencial do rito do batismo e seu significado. As três imersões e emersões na água batismal, representando os três dias de Cristo no sepulcro. No século IV haverá uma estreita relação entre o batismo e o tríduo pascal. Por toda essa simbologia, a vigília pascal será o momento privilegiado para o batismo. Com o decorrer do tempo e a adaptação ao batismo quase exclusivamente a crianças, essa simbologia irá novamente se tornar secundária, dando lugar quase unicamente à simbologia do batismo como novo nascimento.
Quando agora recuperamos o batismo de adultos em uma Iniciação à Vida Cristã com inspiração catecumenal os batizando de preferência na vigília pascal, esta simbologia deveria ser recuperada em toda sua profundidade litúrgica e em sua importância para a espiritualidade cristã.
Artigo do Pe. Luiz Antonio Belini, colunista do Jornal Servindo