No século IV, com a organização da Iniciação Cristã, a Igreja passou a privilegiar a Páscoa como um dia de referência para o batismo. Em função dos sacramentos da Iniciação, batismo, crisma e eucaristia, foi se organizando também o que hoje chamamos de Ano Litúrgico. A Quaresma foi formada não tanto pensando na preparação da comunidade para a Páscoa, mas em vista daqueles que estavam se preparando para o batismo, os eleitos. As leituras previstas para esse tempo litúrgico já revelam seu caráter preparatório para o batismo. Mas antes não era assim. Hipólito de Roma, no início do século III, nos descreve a liturgia batismal indicando apenas um domingo, sem especificá-lo (Tradição Apostólica n.44), dando a entender que poderia ser em qualquer domingo. Tertuliano, no entanto, é nosso testemunho mais expressivo, em uma obra datável entre 200 e 205, a primeira monografia sobre o batismo que conhecemos:
“O dia mais solene para o batismo é, por excelência, o dia da Páscoa, em que é consumada a paixão do Senhor, na qual somos batizados. Não será absurdo interpretar simbolicamente esta passagem, onde o Senhor, para celebrar a páscoa uma última vez, envia seus discípulos a prepará-la: ‘encontrareis um homem carregando água’ (Mc 14,13). É pelo sinal da água que indica o lugar onde celebrará a Páscoa.
Em segundo lugar, o tempo antes de Pentecostes é o tempo mais favorável para conferir o batismo. (...)
Por fim, todo dia é dia do Senhor. Cada hora, cada tempo pode ser conveniente para o batismo, porque, se um é mais solene, todos comportam a mesma graça” (Tertuliano, De Baptismo XIX).
Embora não reste dúvida pelo dia de Páscoa para o batismo, nem mesmo no século IV havia uma unanimidade entre as Igrejas. Em algumas províncias do Oriente, como no Egito, Síria e depois em Constantinopla, a preferência era dada para o dia do batismo do Senhor, festejado na Epifania, No Ocidente, além da Páscoa, era dado preferência também a Pentecostes ou ao dia comemorativo de algum mártir de devoção. Em todo caso, essa preferência pela Páscoa deixou de fazer sentido quando se generalizou o batismo de crianças e o catecumenato praticamente desapareceu. Chegamos assim a um extremo que fez o batismo perder o sentido de ingresso em uma comunidade eclesial e muitas vezes a assumir apenas um significado ritualista. A celebração do batismo passou primeiro para os dias de semana; depois foi privatizada, envolvendo apenas a família e alguns convidados; e, por fim, ao ponto em que alguns fiéis reclamam quando na missa acontece algum batizado e a missa costumeira demora um pouco mais. O Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA) recupera o sentido pascal e a eclesialidade da Iniciação:
“Como a iniciação cristã é a primeira participação sacramental na morte e ressurreição de Cristo, e o tempo da purificação e iluminação ocorre habitualmente na Quaresma e a ‘mistagogia’, no tempo pascal, toda a iniciação deve ter caráter pascal. Por esse motivo, tenha a quaresma absoluta primazia para a mais intensa preparação dos eleitos e seja a Vigília Pascal considerada como tempo próprio para a iniciação nos sacramentos. Contudo, não é proibido que os mesmos sacramentos, por motivos pastorais, sejam celebrados fora desse tempo” (RICA n.8).
A Semana Santa era muito intensa para os eleitos: celebrações, catequeses e ascese. Algo estranho para nós era a privação, em alguns lugares e por algum tempo, de banho. Ocupava um lugar de destaque, no entanto, o jejum. Pelo que escrevem alguns santos padres, devia ser tão rigoroso esse jejum que temos várias referências a ele. Uma delas já tivemos oportunidade de expor quando apresentamos João Crisóstomo. Para aqueles que reclamavam que não conseguiam jejuar como o ensinado, João os incentivava a não desanimarem, mas também a perceberem que poderiam jejuar sem se abster radicalmente de alimentos, porque não se jejua apenas com um sentido, o gustativo, mas com todos.
O auge se alcançava com a vigília pascal, quando os eleitos completavam seu processo iniciático recebendo os sacramentos e se tornando cristãos no sentido pleno do termo. Mas os ritos que compunham esta vigília eram mais complexos que somente a recepção dos três sacramentos. Eles duravam a noite toda. Os eleitos iniciavam a celebração acompanhados dos seus padrinhos, separadamente dos fiéis, os já batizados. Após receberem o batismo e a confirmação, dirigiam-se para junto dos eleitos, onde eram acolhidos e celebravam então a eucaristia. Havia, no entanto, uma grande diversidade de ritos entre as Igrejas. Inclusive a ordem em que eles se realizavam poderia mudar.
Um bom exemplo de como se desenvolviam os ritos nessa vigília em uma Igreja determinada nos é transmitido por santo Ambrósio, bispo de Milão entre 374 e 397. Iniciava-se com a “abertura dos sentidos”, isto é, o “éfata”; bênção da água batismal; unção dos eleitos sobre o corpo todo; renúncia a Satã; ato batismal; unção sobre a cabeça; leitura do Evangelho segundo João (13,4-11); lavação dos pés; vestimenta com vestes brancas; assinalação solene e, por fim, eucaristia. Esses ritos estão bem atestados em Ambrósio, embora não seja descartado que pudessem existir outros que não foram mencionados. Chama-nos a atenção o rito de lava-pés. Estamos acostumados a celebrá-lo na Quinta-feira Santa, na festa da instituição da eucaristia e não nas celebrações do batismo. Era um rito praticado na Igreja de Milão e na Espanha, embora logo o Concílio de Granada o tenha abolido para a Espanha. O argumento é de que não era praticado em Roma. Havia já certa pressão para unificação dos ritos. Sobre isso podemos ver já a argumentação de Ambrósio:
“Nós não ignoramos que a Igreja romana não tem esse costume, da qual seguimos em tudo o exemplo e forma. Contudo, ela não tem esse costume de lavar os pés. Considera, porém, que ela deixou de lado por causa do grande número. Há também aqueles que dizem, tentando desculpá-la, que isso não se deve fazer no mistério, não no batismo, não na regeneração, mas que se deve lavar os pés como se fossem de hóspede. Contudo, uma coisa é a humildade, outra a santificação. No entanto, escuta: é mistério e também santificação: “Se eu não lavar os teus pés, não terás parte comigo” (Jo 13,8). Não digo isso, porém, para repreender outros, mas para que eu exerça as minhas funções. Desejo seguir em tudo a Igreja romana, mas nós também temos razão humana. O que, em outro lugar, se observa de maneira mais correta, nós também guardamos de maneira mais correta.” (Ambrósio, Sobre os Sacramentos III,5)
Ambrósio nos ensina que a universalidade da Igreja não precisa ser alcançada pela uniformidade. Como sugestão, podemos recuperar o lava-pés da Quinta-feira Santa ligado à Iniciação, sempre que for possível. Alguns desses ritos poderiam ser antecipados para a manhã do Sábado Santo.
O RICA recupera também essa possibilidade de celebrar de manhã ou no começo da tarde: “Se os eleitos puderem reunir-se no Sábado Santo, a fim de se prepararem para os sacramentos pelo recolhimento e a oração, propõem-se os ritos seguintes” (n.193): a Recitação do Símbolo; o Rito do Éfeta; Escolha do nome cristão e Rito da unção.
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo