No Servindo do mês passado escrevi sobrecomo, no catecumenato antigo, a transmissão da oração do Senhor, o Pai-Nosso, era um momento privilegiado, em algumas Igrejas, para iniciar os catecúmenos em uma vida de oração. Com o fim daquela experiência e por séculos, a iniciação cristã fixou-se quase exclusivamente na dimensão doutrinal. Quando nos últimos tempos a Igreja busca no catecumenato antigo inspiração para uma iniciação à vida cristã integral, redescobre o valor dessa transmissão e volta a recomendá-la.
“No decorrer do tempo do catecumenato, pode-se fazer a entrega da Oração do Senhor. Desde a antiguidade é a oração característica dos que recebem no Batismo o espírito de adoção de filhos e será dita pelos neófitos, com os outros batizados, na primeira Eucaristia de que participarem. O momento oportuno poderá ser escolhido segundo a evolução da catequese, de forma que coincida com o aprofundamento da vida de oração dos catecúmenos” (RICA n.188)
Um dos comentários privilegiados do Pai-Nosso nesse ambiente catecumenal é a décima primeira homilia catequética de Teodoro de Mopsuéstia. Tivemos a felicidade de que ela tenha chegado inteira até nós em sua versão siríaca. Já tivemos ocasião de nos depararmos com suas instruções mais gerais. Lembremo-nos apenas que Teodoro liga profundamente fé e vida, oração e ação. A oração do Pai-Nosso, mais do que uma fórmula que deva ser repetida à exaustão, deve ser meditada e usada como critério sobre a aplicação dos mandamentos de Deus ao nosso cotidiano. Neste artigo conheceremos alguns detalhes de sua explicação.
Para aqueles que pedem a Jesus que lhes ensine a rezar, Jesus ensina o Pai-Nosso. E acrescenta a necessidade de rezar sempre. Deus sempre atenderá aqueles que rezam com fé e vivenciam sua oração. Mas é preciso estar atentos ao que pedir. Não se deve pedir “coisas”, mas a vivência das virtudes. Jesus transmitiu estas palavras:
“Se é da oração que cuidais, saibais que esta não consiste em palavras, mas na escolha de uma vida virtuosa, no amor a Deus e no empenho pelo que é útil. Se, de fato, sois zelosos nestas coisas, sereis em oração ao longo de toda a vossa vida. E do vosso desejo e escolha destas coisas, lhes virá um grande desejo de orar.
Então vós sabereis certamente também o que deveis pedir. Se de fato escolheis aquilo que convém, não vos deixareis persuadir em pedir algo fora disto, até porque não consentireis em pedir coisas das quais nem vos preocupais.
Vós que desejais as virtudes e nelas estão empenhados, é claro que apresentareis a Deus só estes pedidos que estão de acordo com tais realidades. Se de fato viveis em tal modo e lhes pedis com insistência, vós não ignorais que certamente recebereis” (Teodoro de Mopsuéstia. Comentário ao Pai Nosso, n.5)
Por meio de Jesus, nós recebemos a graça da adoção filial, por isso, podemos chamar a Deus de Pai. Recebemos um Espírito de liberdade, não de escravidão (Rm 8,15). Desde então, somos cidadãos da Jerusalém celeste. Como tais, devemos nos comportar, afastando-nos de toda obra pecaminosa (n.8). E devemos buscar a concórdia: “deveis, cada um de vós, procurar e guardar a unanimidade uns com os outros, porque sois irmãos e sob a mão de um único Pai” (n.9). Este é o motivo pelo qual dizemos “Pai Nosso” e não “Pai Meu”. Que estais nos céus, para que olhando a conduta de lá, nos comportemos assim aqui. Esta será a glória de Deus (Mt 5,16). Rezamos isto com as palavras: santificado seja o vosso nome.
“Se, de fato, fazemos alguma coisa de contrário, nós seremos causa de blasfêmias a Deus, porque todos aqueles de fora, vendo-nos fazer obras más, dirão de nós que não somos dignos de ser filhos de Deus. Se, ao invés, nos comportamos bem, nós confirmaremos que somos filhos de Deus e que somos dignos da liberdade do Pai nosso, e que somos oportunamente instruídos e vivemos uma vida digna do Pai nosso” (n.10)
Aqueles que querem estar nos céus com o Senhor e esperam ser levados a ele (1Ts 4,17), devem desde já viver e pensar de forma compatível com esse Reino: “devem ter pensamentos dignos deste Reino, devem agir segundo aquilo que convém à conduta dos céus, devem considerar pequenas as coisas terrestres e crer que é desonroso entreter-se com elas e pensá-las” (n.11). Por isso rezamos: venha o vosso Reino. Teodoro exorta bem concretamente a essa conduta: não devem andar à toa pelos mercados, pousadas e bares “onde existem muitas ambigüidades e ações iníquas” (n.11).
Este pedido é reforçado: seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. Como a vontade de Deus reina no céu, deverá reinar também na terra. “Assim também a nossa vontade e o nosso pensamento: não nos prenda aqui algum impulso que seja contrário a Deus, como não existirá nenhum lá” (n.24). É verdade que, enquanto estamos no mundo, em uma natureza mortal e mutável, adequar perfeitamente o pensamento e a vontade a Deus não é possível. Somos pecadores. Porém, devemos buscar constantemente a conversão e evitar cada ocasião que nos possa “fazer cair em pensamentos contrários a Deus e de desviar a nossa mente da vontade do bem” (n.12). O bem perfeito é “aquilo que é agradável a Deus!”. E para isto, é preciso se esforçar para que tenhamos uma “mente sã e um amor verdadeiro” (n.13). Podemos contar com a ajuda de Deus, Ele nos atenderá.
Teodoro se empenha em comentar sobretudo o pedido do pão nosso de cada dia. Citando São Paulo em 1Tm 6,8, afirma que nosso pedido deve se restringir àquilo que temos absolutamente necessidade para viver: algum alimento e veste. Pedir mais do que isso, tanto quanto se esforçar para ter o supérfluo, não é conveniente.
“Em relação às realidades deste mundo [diz o Senhor], consinto-lhes de usar de cada uma destas coisas, com a condição de que satisfaçam uma necessidade vital. Mas não peçais nem vos esforçais para obter mais do que precisais” (n.14)
A meta é sermos perfeitos. Mas como pela fraqueza de nossa natureza não nos é possível sermos absolutamente sem pecados, “Ele encontrou imediatamente para isso um remédio no pedido de remissão” (n.15): Perdoai-nos as nossas ofensas. Embora na tradução siríaca do Pai-Nosso de Teodoro seja: “perdoai a nós as nossas dívidas e os nossos pecados, como também nós temos perdoado os nossos devedores” (n.3). Pecados, que logo acrescenta Teodoro, foram indesejados, já que quem procura a perfeição só pode pecar involuntariamente. “Com isto, mostra que podemos ter fé em que receberemos a remissão por tais pecados, se também nós fizermos o mesmo segundo nossas forças, diante de quem nos tem ofendido” (n.16).
Por fim, é preciso pedir a Deus a capacidade e fidelidade para vencermos as tentações. “Antes de qualquer coisa, peçamos a Deus que nenhuma tentação nos atinja; se, porém, somos tentados, peçamos-lhe de saber suportá-la com coragem, e que passe logo” (n.17). Também aqui Teodoro é muito concreto. Exemplifica essas tentações: doenças do corpo, maldade dos homens, pensamentos que nos fazem desviar do bem e outras misérias. Mas também “um belo rosto que, visto por um instante, acorda o desejo que está em nossa natureza” (n.17).
“O nosso Senhor, então, transmitiu com as palavras desta oração a perfeição das condutas e ensinou claramente aquilo que nós devemos ser, aquilo no qual devemos ser zelosos, aquilo do qual nós devemos nos afastar e aquilo que devemos pedir a Deus” (n.19).
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo