No Servindo do mês passado escrevi sobre o chamado Símbolo Apostólico, ou seja, o nosso Credo. É o que rezamos costumeiramente nas missas. Ele apareceu muito cedo na Igreja do Ocidente. Provavelmente em Roma. É uma síntese de nossa fé e apto para a iniciação cristã de adultos. Durante a quaresma, o encarregado de acompanhar os iluminandos, isto é, os catecúmenos que se preparavam para o batismo, explicava a eles cada proposição do Símbolo. Próximos já da celebração sacramental, eles deveriam proclamá-lo para o bispo, demonstrando assim o conhecimento e a adesão ao conteúdo da fé e dos sacramentos que iriam receber. É o que ficou conhecido como Entrega e Devolução do Símbolo.
Em algumas celebrações, no entanto, rezamos um Credo maior, mais detalhado, com algumas expressões um pouco diferentes. É o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. A estrutura é sempre a trinitária, mas ele é mais “desenvolvido”. Este Símbolo foi o resultado de uma intensa reflexão e verdadeiras disputas, que envolveram vários concílios, até se chegar em uma fórmula considerada adequada e por isso ortodoxa. Aos poucos, a pluralidade de Símbolos que expressavam as particularidades das Igrejas e suas preocupações, foi dando lugar a uma única formulação.
“Era usual no Oriente que cada grande Igreja possuísse sua fórmula particular de Credo. A estrutura decerto era comum, mas as variantes podiam ser numerosas. Quando um bispo assumia a cátedra, enviava a seus irmãos no episcopado a fórmula de sua ‘fé’, isto é, o Símbolo de sua Igreja. Estes faziam então ato de reconhecimento do Símbolo de seu irmão e o admitiam em sua comunhão. Esse sistema parece ter funcionado longo tempo, até a generalização do uso do futuro Símbolo de Niceia-Constantinopla” (Bernard Sesboüe)
O nome deste Símbolo é o resultado da união de dois Concílios nomeados pelas cidades em que foram realizados: Niceia, em 325 e Constantinopla, em 381. São os dois primeiros Concílios considerados ecumênicos, ou seja, universais, e aceitos por várias Igrejas cristãs, além, evidentemente, da Católica. Na divisão do mundo de então, são cidades que fazem parte do chamado Oriente. Por isso, às vezes, é dito Símbolo da Igreja Oriental. O Império Romano estava dividido em Ocidental e Oriental quando Constantino o unificou. Estima-se que contasse aproximadamente com 50 milhões de pessoas. Isso é importante porque no Oriente o Símbolo se desenvolveu de modo diferente do Ocidente.
Tendo cessado a perseguição aos cristãos movida pelo Império, os cristãos tinham agora oportunidade para organizar a vida eclesial de modo público e também exercer uma intensa atividade evangelizadora. Mas irão aparecendo também as divergências. Transmitir o conteúdo da fé em línguas e culturas diferentes exigirá uma clareza que só a reflexão teológica poderá dar. Nesta época, particularmente dois problemas precisam ser resolvidos; como compreender a humanidade e divindade de Jesus e como salvar a unidade de Deus afirmando a igual divindade das três pessoas divinas. São os dogmas cristológico e trinitário.
A base deste Símbolo deve ter vindo da Igreja de Cesareia. Eusébio, seu bispo, estimado e respeitado, apresentará o Símbolo de Fé de sua Igreja. Ele será amplamente aceito, mas não suficiente para superar as divergências que motivaram o próprio concílio. Será preciso fazer alguns acréscimos. O resultado final o apresentamos em sua versão latina, um pouco diferente da que estamos acostumados (DH 125):
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, artífice de todas as coisas visíveis e invisíveis.
E em um só nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido unigênito do Pai, isso é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, nascido, não feito, de uma só substância com o Pai (o que em grego se diz homoousion); por meio do qual foram feitas todas as coisas que <há> no céu e na terra; o qual, por causa de nossa salvação desceu, se encarnou e se fez homem, e padeceu, e ressuscitou ao terceiro dia, e subiu aos céus, havendo de vir julgar os vivos e os mortos.
E no Espírito Santo.
Três foram os principais acréscimos. “Isso é, da substância do Pai”: se reafirma que verdadeiramente o Filho foi gerado pelo Pai. Mas aqui é preciso evitar uma compreensão demasiadamente análoga à geração animal. Trata-se de uma geração espiritual, sem separação de substância. “Nascido, não feito” ou, conforme a tradução, “gerado, não criado”: ao longo do terceiro século a Igreja vinha teologicamente refletindo sobre dois modos de produção: por geração ou criação (Deus faz existir “do nada”; no caso do ser humano, “fabricação”, ou seja, ele fabrica a partir de “algo” já existente). O Concílio afirma o modo de “geração”, excluindo o de “criação” no caso do Filho. O tempo teve início com a criação de Deus. No caso da geração aplicada ao Filho, é um “modo de ser” (status ontológico), não implica num antes e depois.
Por fim, “consubstancial ao Pai”, que é traduzido acima como “de uma só substância com o Pai”: embora afirmando o mesmo que o primeiro acréscimo, mas de outra perspectiva, esta será a palavra-chave do concílio. Fonte de muita polêmica. Ela provinha da filosofia grega e era estranha ao pensamento bíblico. Com uma história conturbada no Oriente, parece ter sido aceita mais por imposição de Ósio, legado papal e que pode ter presidido o concílio e por Constantino, do que por consenso. Afirmar que o Filho é consubstancial ao Pai significa dizer que há identidade de substância entre um e outro. É Deus como o Pai.
A definição de Niceia constitui a certidão de nascimento da linguagem propriamente dogmática na Igreja. É a primeira vez que, num texto eclesial oficial e normativo, se acham empregados termos que não vêm da Escritura, mas da filosofia grega. Essa ‘novidade’ pareceu escandalosa a muitos contemporâneos e foi causa de uma das crises mais graves que a Igreja conheceu (Bernard Sesboüe)
Este Símbolo será antes de tudo um Símbolo de Fé para os bispos. São eles os primeiros encarregados de explicá-lo aos iluminandos. Um exemplo encontra-se nas catequeses de Cirilo de Jerusalém, mas que podem também ter sido de seu sucessor no episcopado, João. Sobre elas, somos informados pela monja Egéria, contemporânea do Concílio de Constantinopla. Em seu Diário, ela escreveu sobre essas catequeses e seus ritos. Duram três horas: das 6 às 9 da manhã. Nelas, o bispo explica inicialmente as Sagradas Escrituras e, depois, o Símbolo. Tanto as Sagradas Escrituras quanto o Símbolo é primeiro explicado em seu sentido literal e depois espiritual. Como não se escrevia o Símbolo, os padrinhos ajudavam os candidatos a memorizá-lo. Na última semana da quaresma, um a um, deveriam passar na frente do bispo e proclamar de memória o Símbolo. Egéria descreve essa “entrega do Símbolo” ao bispo:
“Quando já tiverem transcorridas sete semanas, resta aquela única semana pascal que aqui chamam semana maior, então já chega o bispo de manhã no Martyrium. No fundo da abside, atrás do altar, põe-se uma cadeira para o bispo e aí vão um a um, o homem com seu padrinho e a mulher com a sua madrinha, e entregam o Símbolo para o bispo” (Peregrinação de Egéria 46,5).
O Ritual da Iniciação Cristã de Adultos resgata a Entrega e Devolução do Símbolo. Adaptando para a nossa realidade.
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo