Estando em Milão, Agostinho entra em uma profunda crise existencial. Abandona definitivamente a seita dos maniqueus e começa a se reaproximar da fé cristã. Escutar o bispo Ambrosio estava fazendo com que suas dúvidas quanto às Sagradas Escrituras fossem se dissipando, sobretudo a respeito do Antigo Testamento. Mas Agostinho ainda precisava de um estímulo para que sua decisão em favor da fé cristã fosse completa. Gostaria de um contato mais duradouro e personalizado que Ambrósio, tão ocupado, não podia dar-lhe. Será um sacerdote ancião, Simpliciano, quem irá acompanhá-lo nessa busca.
Quando Ambrósio foi eleito pelo povo de Milão como seu bispo, era governador da província romana. Homem de vasta cultura, mas não propriamente nas questões relativas a vida da Igreja e nas Sagradas Escrituras. Enviaram então a Milão Simpliciano, presbítero da Igreja de Roma, para ajudá-lo em sua própria formação e na condução da diocese. Em 387, mesmo idoso, por indicação do próprio Ambrosio antes de morrer, irá sucedê-lo no episcopado. No livro oitavo das Confissões, Agostinho narra um desses encontros com Simpliciano.
Agostinho contou ter lido alguns livros de filósofos neoplatônicos (entre eles provavelmente Porfírio e Plotino), traduzidos do grego para o latim por Mario Vitorino e que este, já na velhice, havia se convertido ao cristianismo. Simpliciano, que conheceu intimamente Vitorino quando vivia em Roma, narra então para Agostinho como se deu sua conversão e iniciação cristã.
“Simpliciano conta que Vitorino lia a Sagrada Escritura e estudava e meditava com profunda atenção todos os escritos cristãos e confiava a Simpliciano, não em público, mas em grande segredo e intimidade: ‘Sabes que já sou cristão?’ Respondia-lhe Simpliciano: ‘Não acredito, e não te considerarei entre os cristãos enquanto não te vir na Igreja de Cristo’. Vitorino replicava-lhe, sorrindo: ‘Mas então, as paredes das igrejas é que nos fazem cristãos?’” (Confissões VIII 4)
A figura de Vitorino é importante para Agostinho. De formação e profissão, Agostinho é um retórico. Na época, a retórica era a ciência que contemplava o estudo da língua, desde a gramática até a arte do discurso. E Vitorino foi um dos mais respeitados e notáveis retóricos romanos. “Pelos méritos conquistados em sua brilhante carreira de ensino, recebeu uma estátua no fórum romano, fato este que os cidadãos deste mundo consideram grande honra” (Confissões VIII 3). A fama e a vida na corte romana dificultavam que assumisse publicamente sua conversão. “Na realidade, não queria desgostar os amigos, orgulhosos adoradores de demônios; (...) fariam cair sobre ele o peso da inimizade” (Confissões VIII 4). Até que chegou o dia. Vitorino se dirige decidido a Simpliciano:
“’Vamos à igreja, quero tornar-me cristão’. Este [Simpliciano], não cabendo em si de alegria, o acompanhou imediatamente. Foi aí iniciado nos primeiros mistérios da catequese e, pouco tempo depois, deu o nome para regenerar-se no batismo, para admiração de Roma e alegria de toda a Igreja” (Confissões VIII 4).
É interessante notar: mesmo sendo quem era, o grande intelectual romano, que havia se convertido lendo as Sagradas Escrituras e os livros cristãos, amigo íntimo do presbítero Simpliciano (que foi o seu “introdutor”), Vitorino não recebeu imediatamente o batismo, como um privilégio, mas fez a caminhada catecumenal. Ingressou no Catecumenato, foi iniciado na Catequese e deu o nome para o batismo. Como todos os Pedintes (Agostinho os chama assim porque “pedem” o batismo), aqueles que se preparavam para o batismo durante a quaresma, professou sua fé. Agostinho dá muito destaque a isso, porque certamente foi um evento importante para a Igreja de Roma.
“Chegou finalmente a hora da profissão de fé. Em Roma, os que estão para se aproximar da tua graça costumam recitar de cor uma determinada fórmula, em lugar elevado, diante de todos os fiéis. Contudo, os presbíteros – contava Simpliciano – ofereceram a Vitorino a possibilidade de fazer a profissão a portas fechadas, como se costumava propor àqueles que poderiam emocionar-se por timidez. Mas ele preferiu confessar sua salvação diante do povo santo, uma vez que havia professado publicamente a retórica, que não ensinava a salvação” (Confissões VIII 5).
A fórmula da profissão de fé não é descrita. Era um segredo mantido entre os “iniciados”. Transmitida apenas de forma oral. Sabemos, no entanto, que era bem próxima ao nosso Credo atual. Assim que subiu à tribuna para recitar a fórmula, conta Simpliciano, “todos os que o conheciam o aplaudiam gritando seu nome. E quem não o conhecia? Ressoou pela boca de todos um alegre murmúrio: ‘Vitorino, Vitorino!’” (Confissões VIII 5).
“Ele proclamou sua verdadeira fé com admirável segurança. Todos desejavam levá-lo para dentro do coração e, de fato, para lá o arrebatavam com as mãos do amor e da alegria” (Confissões VIII 5).
Como era de se esperar, os seus antigos amigos irritaram-se, “consumindo-se de raiva, rangiam os dentes” (Confissões VIII 4). Vitorino foi obrigado a fechar sua escola por causa de um decreto do imperador Juliano. Mas isso não importava mais. Ele agora poderia dedicar-se integralmente à sua fé. Com a história de Vitorino, Simpliciano deu a Agostinho o estímulo que ele precisava.
“Logo que teu servo Simpliciano me contou esses fatos sobre Vitorino, senti imenso desejo de imitá-lo. Aliás, era o que sua narração tinha em vista” (Confissões VIII 10).
Escrito por: Pe. Luiz Antônio Belini