Nos últimos Servindos estamos tendo contato com a Dei Verbum (DV), o documento do Concílio Vaticano II sobre a Palavra de Deus. O Concílio nos apresenta de forma didática o núcleo do que precisamos reter desta questão para proveito de nossa vida de fé. Pela primeira vez na história se preocupou em nos apresentar a Revelação em si mesma, objeto do seu capítulo de abertura. Depois enfrentou o problema de sua transmissão, objeto do segundo capítulo. Em seguida, tratou da inspiração e interpretação da Sagrada Escritura. Em nosso último Servindo o tema foi a inspiração; neste, completaremos o terceiro capítulo abordando a sua interpretação. De fato, os últimos capítulos da Dei Verbum são dedicados exclusivamente à Sagrada Escritura.
A inspiração não significa um simples diálogo, quase como se o hagiógrafo, o escritor sagrado, fosse apenas um objeto utilizado por Deus. A Dei Verbum, retomando a posição de São João Crisóstomo (que viveu aproximadamente entre 347-407), usa como termo técnico a expressão condescendência: “na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a admirável ‘condescendência’ da eterna sabedoria, ‘para conhecermos a inefável benignidade de Deus e com quanta acomodação Ele falou, tomando providência e cuidado da nossa natureza’. As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana.” (DV 13; para uma explicação detalhada, veja o Servindo anterior).
A última afirmação nos dá a razão de nossa questão: Jesus, o Verbo de Deus, encarnou-se em um lugar no espaço e em um momento da história humana determinados. Comunicou-se em uma língua específica com todas as suas possibilidades e limites, marcada pela cultura de seu povo e tempo. A este ponto, é natural a afirmação da necessidade de interpretação da Escritura:
“Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras.” (DV 12)
O que Deus quis revelar deve ser colhido através da intenção do hagiógrafo, ou seja, o que ele quis comunicar, embora vá além dela. Os estudiosos (exegetas), portanto, devem procurar o sentido literal (não confundir com o “fundamentalismo”) e o sentido que possuem em relação ao todo da Escritura. É ainda necessário encontrar o melhor modo de expressar isto nas muitas línguas e culturas dos interlocutores, ou seja, dos destinatários desta Palavra (hermenêutica).
“Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os ‘gêneros literários’. Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de gêneros históricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo dos gêneros literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que o autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então.” (DV 12)
A Bíblia é uma biblioteca: recolhe livros de vários gêneros literários. Cada um deles transmite sua mensagem de uma maneira. É preciso saber ler sua verdade de acordo com seu estilo. Quando entramos em uma biblioteca encontramos jornais, revistas, gibis, livros de poesia, contos, romances, ciências, filosofia.... o que aconteceria se lêssemos tudo como se fosse um único gênero literário? Como se tudo fosse história, ciência ou romance? Um exemplo mais ilustrativo para nós brasileiros que lemos pouco: ao longo de um dia, um canal de televisão tem programas de muitos gêneros diferentes: noticiário, propaganda, humor, entrevista, filme, novela, desenho, esporte. O que aconteceria se um telespectador assistisse o dia todo interpretando como um único gênero? Como se tudo fosse novela ou noticiário? Cada gênero literário ou televisivo tem um modo próprio de transmitir sua mensagem, que pode ser verdadeira ou não. Ao crescer em nossa cultura e sociedade, somos educados para distinguir os gêneros televisivos sem muito problema; o mesmo não acontece com os gêneros literários e principalmente quando nos referimos à Bíblia, vivenciada e escrita em outra língua, época e cultura.
A própria Bíblia é já uma interpretação: o povo judeu interpreta a vontade e ação de Deus através de sua história. Toda tradução da Bíblia também já é uma interpretação. Quem traduz deve escolher as palavras que pensa serem as melhores para dizer em sua língua o que quer dizer na língua original. Isso para lembrarmos apenas uma dificuldade entre tantas das traduções. Por isso temos tantas traduções diferentes! É responsabilidade da Igreja cuidar das traduções. Exige de nós também, portanto, uma interpretação e até um estudo atento e orante.
“Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na investigação do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.” (DV 12)
O Catecismo explica assim:
“O Concílio Vaticano II indica três critérios para uma interpretação da Escritura conforme ao Espírito que a inspirou: 1. Prestar muita atenção ‘ao conteúdo e à unidade da Escritura inteira’. Pois, por mais diferentes que sejam os livros que a compõem, a Escritura é una em razão da unidade do projeto de Deus, do qual Cristo Jesus é o centro e o coração (...); 2. Ler a Escritura dentro ‘da Tradição viva da Igreja inteira’. ‘a sagrada Escritura está escrita mais no coração da Igreja do que nos instrumentos materiais’. Com efeito, a Igreja leva na sua Tradição, a memória viva da Palavra de Deus, e é o Espírito Santo que lhe dá a interpretação espiritual da Escritura (‘... segundo o sentido espiritual que o Espírito dá à Igreja’). 3. Estar atento ‘à analogia da fé’. Por ‘analogia da fé’ entendemos a coesão das verdades da fé entre si e no projeto total da Revelação.” (Cat. 112-114). A analogia da fé afirma que as Escrituras devem ser interpretadas de acordo com a fé cristã como um todo, ou seja, nenhum versículo ou passagem bíblica pode ser interpretado de modo a contradizer o conjunto das verdades fundamentais da fé.
Por tudo o que se lembrou acima, é perigoso uma leitura literal (apegando-se ao que as palavras dizem “ao pé da letra”) e descontextualizada. Não devemos nos ater em versículos isolados, fora de seu contexto, interpretando o que as palavras em português sugerem. “...Para apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, deve-se atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, levada em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé” (DV 12).
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo