O CATECUMENATO ANTIGO COMO INSPIRAÇÃO

08 de Julho de 2024

"O CATECUMENATO ANTIGO COMO INSPIRAÇÃO"

Não se nasce cristão. Tertuliano o afirma em forma lapidar. O cristão se faz. Em resposta a esse desafio, a Igreja foi se estruturando para receber os novos membros, resultado de seu empenho evangelizador. Dirige-se ao mundo pagão, muitas vezes hostil e perseguidor. É neste contexto desafiador que vai se estruturando o que ficou conhecido como catecumenato. Tem seu auge no século III; se estabiliza e se adapta às novas necessidades nos séculos IV e V; e, com a cristianização da sociedade europeia e generalização do batismo de crianças, vai sofrendo profundas transformações, até desaparecer na forma que se conhecia.

A nova situação sociocultural e política gerada pelo mundo moderno e o fim do “cristianismo sociológico” provocou na Igreja a redescoberta de sua missão evangelizadora e iniciadora. Esta nova situação foi acolhida pelo Concílio Vaticano II e estimulada em suas respostas. O catecumenato antigo aparece como inspiração, seja no âmbito da iniciação de convertidos adultos, seja no da reiniciação, isto é, daqueles que receberam os sacramentos, mas não foram devidamente evangelizados e permaneceram com uma fé e vida eclesial muito superficial. Os sacramentos da reiniciação são a penitência e eucaristia. Este movimento da Igreja pós-Vaticano II tem sido chamado de “nova evangelização” e, com o papa Francisco, de “Igreja em saída”. Quem evangeliza, deve iniciar. Mas em que nos inspira o catecumenato antigo?

O catecumenato antigo é um itinerário, ou seja, um processo, um caminho dilatado no tempo, em que o catecúmeno vai amadurecendo em sua opção pessoal cristã (fé, conversão e compromisso). Como itinerário com uma meta bem definida, é constituído de etapas, com alguns eventos de avaliação do caminho percorrido e do que se deve ainda percorrer (os “escrutínios” e exorcismos). O itinerário leva em conta também o ponto de partida, que pode ser um momento pessoal diferente, mas também situações sociais e culturais diferentes. Embora no catecumenato antigo existiam muitos pontos convergentes, não há a preocupação com uma unificação asfixiante. A pluralidade não é sentida como uma ameaça. Ambrósio nos dá um exemplo ao justificar o costume de, na Igreja de Milão, realizar o rito do lava-pés na celebração do batismo e no de Roma, não. Ambrósio afirma: “Desejo seguir em tudo a Igreja romana, mas nós também temos razão humana. O que, em outro lugar, se observa de maneira mais correta, nós também guardamos de maneira mais correta” (Sobre os Sacramentos III,5).

O itinerário integra o catecúmeno na comunidade eclesial, onde participará da liturgia sacramental, da vida comunitária e do testemunho missionário, em concordância com as três dimensões deste processo: litúrgica, catequética e moral (ascético-penitencial). Embora se tenha pessoas e ministérios específicos – sacerdote que preside as celebrações; catequistas, introdutores, padrinhos etc. – é a comunidade que inicia, que acolhe e acompanha o catecúmeno. O catecumenato é parte de uma concepção e realização de Igreja, depende de uma eclesiologia de comunhão e participação. Um dos grandes problemas a ser superado é justamente o individualismo e privatização da fé.

A fé cristã é essencialmente eclesial. Os crentes experimentam entre si laços de comunhão que brotam do evangelho, base da vida cristã. A Igreja não é um grupo social a mais, mas um grupo distinto, pois constitui um mistério. Ao mesmo tempo é uma koinonia, uma comunhão apostólica, eucarística, de bens e de afetos, que se realiza em cada comunidade cristã. Por conseguinte, sem comunidade não pode haver uma verdadeira iniciação. Só a Igreja que inicia é capaz de receber novos fiéis iniciados. O catecumenato introduz o convertido na comunidade cristã que se fundamenta na palavra de Deus, vive um processo de conversão, celebra a salvação de Deus, está encarnada na realidade do mundo, testemunha sua própria fé e se reconhece como autêntica comunhão” (C. FLORISTÁN).

A renovação do catecumenato não acontecerá sem a renovação de nossas comunidades cristãs. O batismo é, antes de tudo, o ingresso na comunidade dos crentes. A vivência comunitária da fé é essencial, mas não deve ser idealizada ou romantizada. Também elas têm seus problemas. Basta lermos as cartas de Paulo para percebermos. Estamos sempre necessitados de perdão e de retomar o caminho.

O catecumenato antigo é expressão de uma Igreja exigente, que se recusa a dar os sacramentos às pressas e sem a devida preparação. Os introdutores, catequistas, pais e padrinhos, desempenham suas funções no seio de sua comunidade. Existe um grande respeito pelos sacramentos. É o tesouro da Igreja e para participar dele é preciso ter ali seu coração. O itinerário é existencial e a conversão demanda tempo e maturação. O catecumenato antigo nos lembra que esse processo comporta uma dimensão intelectual apropriada, a catequese, mas não é simplesmente uma escola, um cursinho para adultos. Reduzi-lo a uma questão de conteúdo a ser ensinado e aprendido é uma tentação permanente.   

Ao mesmo tempo em que o catecúmeno nestes primeiros séculos tem uma série de restrições e limites na participação da vida litúrgica da Igreja, como por exemplo, participar apenas da liturgia da Palavra e não ter acesso à liturgia eucarística, a não ser no momento em que estiver sendo efetivamente iniciado, ou desconhecer os ritos e símbolos que vão se sucedendo e serão explicados posteriormente, nas catequeses mistagógicas, sua vivência litúrgica é rica. O itinerário é ingresso em uma comunidade eclesial que ora e celebra. Se queremos recuperar o catecumenato nos inspirando na experiência exitosa dos primeiros séculos, precisamos recuperar também a riqueza litúrgica de nossa Igreja. O próprio Ano Litúrgico foi estruturado em relação ao catecumenato. A Quaresma é o melhor exemplo. Os fiéis rememoravam o seu batismo celebrando os eventos dos que haviam dado seu nome e seriam iniciados na Vigília Pascal.

O catecumenato antigo nos inspira, por fim, a um itinerário que supere uma religiosidade intimista e desvinculada da vida cotidiana. O batizado tem uma missão de ser luz para o mundo no seguimento do Mestre. Deve se comprometer com a transformação da sociedade. Se pelo batismo nos consideramos filhos do mesmo Pai, a fraternidade e a “amizade social” são valores que não podem faltar ao cristão.

Tudo o que acabamos de expor deixa perceber que a Iniciação exige uma disposição e comprometimento pessoal. Embora desde muito cedo a Igreja tenha batizado também crianças e até recém-nascidos, essa prática não era generalizada, e a criança era batizada por causa de sua família. É preciso rever a administração generalizada do batismo para crianças. O próprio Direito Canônico expressa essa preocupação: “haja fundada esperança de que será educada na religião católica, se essa esperança faltar de todo, o batismo seja adiado segundo as prescrições do direito particular, avisando-se aos pais sobre o motivo” (Cân 868, §1). É preciso superar uma concepção demasiadamente mágica dos sacramentos.

Inspiração não é repetição. O catecumenato antigo nos ajuda a recuperar uma simplicidade substancial e o significado profundo da ritualidade e simbologia que possamos ter perdido.

Podemos terminar com o conselho que Agostinho dá para os que estão envolvidos na Iniciação à Vida Cristã a respeito dos candidatos ao catecumenato: “... mais do que dizer-lhe muitas coisas sobre Deus, falar a Deus em favor dele” (Primeira Catequese Aos Não Cristãos XIII,18).

[Este foi o último artigo desta série sobre a Iniciação à Vida Cristã iniciada no Servindo de fevereiro de 2019]


Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo