O Rito de Entrega da Veste Branca

25 de Março de 2024

"O Rito de Entrega da Veste Branca"

Após sair da piscina batismal, o batizado era revestido com uma veste branca. No Servindo anterior, vimos todo o simbolismo bíblico desta veste. Retomando brevemente: a cor branca indica principalmente a participação ao mundo celeste. Os anjos e Jesus transfigurado e ressuscitado aparecem vestidos de branco. Por esta participação, indica também a pureza e a inocência reencontrada, aquela que Adão havia perdido pelo pecado. A entrega desta veste indica que o batizado abandonou as vestes das trevas e do pecado e tornou-se “filho da luz”. Entrou no caminho da luz que conduz ao Reino de Deus, seguindo Cristo ressuscitado, do qual agora se reveste.

Este rito da entrega da veste branca como outros ritos e símbolos que acompanhavam o batismo propriamente dito – a imersão na água com a fórmula de credo trinitário – variava, nos primeiros séculos, conforme as comunidades eclesiais e suas heranças culturais. Os testemunhos que temos são raros e, em geral, parciais. A própria ausência em documentos mais primitivos não significa necessariamente que não existissem. Santo Ambrósio, por exemplo, não menciona esse rito em sua obra Sobre os Sacramentos, mas o menciona em Sobre os Mistérios (VII,34). Em todo caso, no século IV, encontramos esse rito já difundido e presente em muitas homilias dos Santos Padres, o que leva a pensar que sua origem seja bem mais antiga. Podemos ler alguns destes testemunhos:

“Depois disto, recebeste vestes brancas, para mostrar que despiste o invólucro dos pecados e que te revestiste com as roupas castas da inocência” (AMBRÓSIO, Sobre os Mistérios VII,34). “Uma vez saído da água, tu te revestiste de uma veste toda esplendente” (THÉODORE DE MOPSUESTE, Homélie sur le Baptême III,26). “Sepultamento e ressurreição, isso é o batismo: o velho é sepultado com o pecado e o novo homem é ressuscitado, renovado à imagem daquele que o criou. Despojamento e vestimenta: nós nos despojamos da roupa velha, suja pela multidão dos nossos pecados e vestimos a nova, limpa de toda mancha. O que foi que eu disse? Nós nos revestimos com o próprio Cristo. ‘Pois todos vocês’, diz a Escritura, ‘que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo’” (JEAN CHRYSOSTOME, Huit Catéchèses Baptismales VI,11).

 O rito da veste branca não era um acréscimo desajeitado, como muitas vezes acontece nas celebrações atuais, em que o batizando já se apresenta de branco ou simplesmente o padre coloca sobre ele uma parte de sua estola branca e reza uma fórmula. Os rituais, inclusive, deixam claro que é um rito facultativo. Na Igreja dos primeiros séculos, ele se integra perfeitamente no desenrolar da celebração batismal e é muito expressivo. Os catecúmenos despojavam-se de suas vestes, entravam na piscina, eram batizados e, ao sair, revestiam-se de vestes brancas. Indicava a passagem de um estado a outro. Desnudar-se e revestir-se indicam que o batismo opera uma mudança radical na existência do batizado.

Passagem do pecado à inocência. A veste que tira, simboliza o “homem velho”, o pecador, escravo de Satanás, a quem acabou de renunciar. A entrega de uma veste nova, branca, indica a mudança realizada pelo banho sacramental. É um “homem novo”, purificado do pecado, revestido de Cristo. Está agora reconciliado com Deus.

Passagem da condição mortal à incorruptibilidade. Aparece novamente a influência de Paulo: enquanto o “velho Adão” foi expulso do paraíso e sujeito a morte, consequência do pecado, o batizado retorna a ele pelo banho de purificação. Cristo, do qual o batizado se reveste, venceu a morte. Os Santos Padres irão explorar inclusive a simbologia das vestes para indicar o retorno à condição original, que é aquela celeste, ou seja, incorruptível, para a qual foi criado.

"Tu nos expulsaste do paraíso e para ele tu nos chamas de novo; tu nos retiraste as folhas de figueira, esse indumento miserável e tu nos revestiste de uma túnica gloriosa” (GREGÓRIO DE NISSA. In: PG 46,600A). E comentando a parábola em que o pai do filho pródigo o veste com uma túnica em seu retorno: "não de uma outra túnica, mas da primitiva, a mesma da qual fora despido pela desobediência” (Id. 44,1143B).

Passagem das trevas à luz. A veste branca era chamada de “veste de luz”. Indica que o batizado abandonou o caminho das trevas para trilhar o caminho da luz. O rito que seguirá será justamente a entrega da vela acesa no Círio Pascal. “Deus Pai nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do seu Filho amado” (Col 1,13). Este rito se encaixa perfeitamente no desenvolvimento da celebração: o catecúmeno havia renunciado a Satanás voltado para o Ocidente, lugar das trevas, porque é onde o sol se põe e declarado sua adesão a Cristo voltado para o Oriente.   Entra na piscina batismal também pelo lado ocidental; uma vez batizado, sai da piscina pelo lado oriental, lugar da luz, porque é onde o sol nasce, e recebe a veste de luz. Jesus é a “luz verdadeira” (Jo 1,9). No Credo, rezamos chamando o Filho de “luz da luz”. Esta simbologia era tão forte que os Santos Padres chamavam o batismo de “iluminação” e os batizados de “iluminados”.

Passagem da escravidão de Satanás à libertação por meio de Cristo. A veste branca indica a alegria de quem foi libertado da escravidão de Satanás e agora participa da liberdade dos filhos de Deus. Vive no esplendor da esperança da glória definitiva daquele de quem se revestiu: “Quando Cristo se manifestar, ele que é a nossa vida, então vocês também se manifestarão com ele na glória” (Col 3,4). Por isso, é comparado com a veste de Cristo transfigurado: o batizado se reveste com “a veste do Senhor, radiante como o sol, aquela que o revestia de pureza e de incorruptibilidade quando subiu à montanha da transfiguração” (GREGÓRIO DE NISSA, PG 44,1005C).

Passagem do exílio do paraíso ao seu retorno. Se a morte entrou no mundo pelo pecado de Adão, Cristo, o Novo Adão, venceu a morte e restaurou a vida com Deus. O batizado inaugura em Cristo ressuscitado, do qual já participa sacramentalmente, o seu retorno à vida paradisíaca. A Tradição, sobretudo depois das contribuições de Santo Agostinho, irá expressar esse retorno como efeito do batismo que lava ou purifica do “pecado original”.

Passagem de um mundo desigual e injusto para um mundo de igualdade. O banho de regeneração muda profundamente os batizados, a ponto de abolir qualquer diferença sexual, racial, social, cultural ou econômica. Fazem parte do único corpo de Cristo. Por isso, Paulo pode afirmar: “vocês todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo.  Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (Gal 3,26-28). Os primeiros cristãos compreenderam que isso não poderia ser apenas palavras bonitas, mas uma forma de vida: “Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas” (At 2,44).

A veste branca simboliza, portanto, o estado paradisíaco perdido por Adão e restaurado por Cristo; a configuração à graça de Cristo; um modo novo de vida pessoal e comunitária; enfim, é prefiguração da glória futura antecipada sacramentalmente na vida presente. Ao menos em Roma, os batizados usavam sua veste branca durante toda a oitava da Páscoa (JOÃO, O DIÁCONO, Carta a Senário 6). Este rito, com seu simbolismo, merece mais atenção de nossa parte, na catequese e nas celebrações. 



Artigo do Pe. Luiz Antonio Belini, colunista do Jornal Servindo