Renúncia a Satanás e Adesão a Cristo

09 de Maio de 2023

"Renúncia a Satanás e Adesão a Cristo"

Todo o caminho catecumenal foi interpretado como um processo de desvinculação de Satanás e superação de suas obras. Por isso, durante a quaresma os eleitos foram exorcizados cotidianamente. É uma “luta”, porque Satanás não quer perder o eleito para Cristo. Erraríamos, no entanto, se interpretássemos essa luta espiritualistamente, como algo “transcendente” que nada tem a ver com a vida concreta. Livrar-se de Satanás e suas obras pressupõem superar os vícios e tudo o que é mal; a adesão a Cristo, revestir-se das virtudes cristãs, antes de tudo, as teologais: fé, esperança e caridade; e daquelas cardeais, assim chamadas porque são o alicerce da vida cotidiana: prudência, justiça, fortaleza e temperança. Em resumo, livrar-se de toda pedra de tropeço para seguir livremente a Jesus carregando sua cruz.

O eleito já recebeu também o Símbolo e, através dele, a explicação das verdades fundamentais da fé. Aprendeu o que significa seguir a Cristo e as implicações para sua vida. Agora é o momento solene em que estabelecerá definitivamente o repúdio a Satanás e fará sua adesão a Cristo. Teodoro explica assim, aos seus eleitos, a necessidade desse rito:

         “Uma vez que o diabo, a quem obedecestes, a começar pelos chefes da vossa raça, foi para vós a causa de numerosos males, é preciso que prometais vos afastar dele. Antes, mesmo que quisésseis, não teríeis podido; mas, graças aos exorcismos, a sentença divina prometeu-vos a libertação e vós podeis dizer: eu renuncio a Satanás, indicando, por sua vez, a associação anterior que tínheis com ele e da qual vos afastais” (THÉODORE DE MOPSUESTE, Les homélies, XIII 5).   

 Algumas explicações, ainda que mínimas e sumárias, são necessárias. A primeira é quanto à terminologia: Satã. Satanás, Diabo, demônios etc. possuem origem e significados diferentes conforme o tempo e a área cultural e linguística, bíblica ou extrabíblica. Embora teologicamente se equivalham. Podemos trabalhar com a definição que nos dá o Catecismo da Igreja Católica (1992, n.414): “Satanás ou o Diabo, bem como os demais demônios, são anjos decaídos por se terem recusado livremente a servir a Deus e ao seu desígnio” e “tentam associar o homem à sua revolta contra Deus”. São criaturas de Deus e não seres que estejam no mesmo nível de Deus, embora contrapostos, ou seja, são infinitamente inferiores a Deus. Devemos evitar todo tipo de dualismo que colocasse Deus e essa criatura má no mesmo patamar. Também não se pode simplesmente reduzi-lo à imaginação de mentes primitivas. Nós “experimentamos” em nosso cotidiano uma estrutura de pecado que nos precede, nos influencia e nos sucederá. A Tradição a explica teologicamente como ação de Satanás.  É preciso também lembrar que a Igreja possui uma hierarquia de verdades (Unitatis redintegratio n.11) e o Diabo aparece somente perifericamente nela e como um contravalor, ou, como o afirmou Bento XVI, se o ser pessoal se define por sua capacidade relacional, o diabo é um “não-pessoa”, isto é, princípio de negação, impossibilidade de uma relação positiva. É preciso um equilíbrio: o Magistério da Igreja sempre afirmou a existência do Diabo, mas também sempre se opôs a expressões de superstição e mentalidade mágica.

         “Tratamos destes fatos, não porque tenhamos prazer de falar sobre o diabo, mas porque a vós seja manifestada de modo seguro a doutrina que a ele se refere” (JOÃO CRISÓSTOMO, De diabolos tentatore. Hom. 2,1).

         “Teme o Senhor e guarda seus mandamentos. (...) Não temas o diabo. Temendo ao Senhor, triunfarás do diabo, pois ele não tem poder. (...) Teme as obras do diabo, porque elas são más. Temendo ao Senhor, teme também as obras do diabo, e não as pratiques, mas afasta-te delas” (PASTOR DE HERMAS 37,1-3)

Nós encontramos este rito de renúncia a Satanás e de adesão a Cristo em todas as Igrejas e autores que temos estudado. Mas diferenciam-se muito quanto ao momento em que se faz, o modo, o local e a própria fórmula.

Na maior parte das Igrejas, este era o rito com o qual se iniciava a vigília pascal que terminaria com o batismo propriamente dito no amanhecer do domingo de páscoa. Em algumas Igrejas, no entanto, ele foi antecipado e desvinculado da vigília pascal. O motivo parece ter sido a grande quantidade de eleitos que se batizaria, convertidos vindos do paganismo. Como a vigília pascal já era em si uma celebração bastante complexa, a intenção era torná-la mais leve. Em Antioquia, por exemplo, entre 372 e 398, este rito acontecia na sexta-feira santa; na Hipona de Agostinho, provavelmente acontecia no domingo anterior à Páscoa e estava ligado à redditio Symboli, ou seja, a recitação do Credo pelos eleitos.  

No Ocidente, o comum era proceder através de perguntas e respostas; já no Oriente, era feita de forma declaratória. Como o rito é vivenciado como um contrato do fiel com Deus e em forma solene de juramento, segue alguns costumes, ou “formalidades” próprias de cada cultura e época.  O eleito está muitas vezes de pé ou de joelhos; sobre cilícios, uma espécie de veste áspera que causa alguma dor, própria para sacrifícios; inteiramente nu ou apenas com as roupas íntimas; com as mãos estendidas ou levantadas em direção ao Ocidente para a renúncia e ao Oriente para a adesão a Cristo. Quanto à fórmula da renúncia, ela poderia ser direta ou indiretamente dirigida contra Satanás. Cirilo de Jerusalém em suas catequeses na semana após o batismo, quando explica os sacramentos recebidos, a descreve assim:

“Agora entrastes no vestíbulo do batistério e, estando de pé e voltados para o Ocidente, recebestes a ordem de estender a mão. Renunciastes então a Satanás como se ele estivesse presente, dizendo: Eu renuncio a ti, Satanás, a todas as tuas pompas e ao teu culto” (Catequeses Mistagógicas).

Também Teodoro de Mopsuéstia comenta esse rito. Podemos perceber algumas variações, mas é idêntica no essencial. Em Teodoro já encontramos a adesão a Cristo:

“De novo estais em pé sobre os cilícios, pés descalços, tendo retirado vossas vestes exteriores, e as mãos estendidas para Deus, como em atitude de oração. Depois vos ajoelhastes, conservando o restante do corpo ereto. E dissestes: Eu renuncio a Satanás, a todos os seus anjos, a todas as suas obras, a todo o seu culto, a toda a sua vaidade e a todo desregramento secular e eu me comprometo por voto a ser batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (THÉODORE DE MOPSUESTE, Les Homélies, XIII).

Enquanto em Jerusalém, segundo Cirilo, a renúncia era dirigida diretamente a Satanás; em Mopsuéstia, ela era feita indiretamente. Em ambas, no entanto, aparece claro a ruptura com Satanás e tudo o que ele representa e que a adesão a Cristo implica. Cristo destruiu seu poder. Venceu a morte pela sua morte. E venceu pela cruz. Por isso, a fronte do eleito é marcada com a cruz, é uma fronteira que o mal não pode ultrapassar. É “um escudo inexpugnável contra o demônio” (JOÃO CRISÓSTOMO).

Para concluir, uma explicação. Para o homem do mundo antigo, mais do que para nós, o sol é uma referência vital, é luz, possibilitando uma analogia com Jesus. O sol nasce no Oriente e se põe no Ocidente, por isso, simbolicamente indicado como região das trevas e morada de Satanás. Cirilo afirma: “Voltando-vos simbolicamente para o Ocidente, renunciais a esse tirano tenebroso e obscuro” (Catequeses Mistagógicas 1069 A).

Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo