Inácio e Irineu: os antecedentes dos Símbolos de Fé

04 de Maio de 2022

"Inácio e Irineu: os antecedentes dos Símbolos de Fé"

No Servindo passado escrevi sobre as confissões de fé e seus modelos cristológicos (ligam a pessoa de Jesus a um de seus títulos): binários (faz menção ao Pai e ao Filho) e ternários (fazem menção às três pessoas da Trindade). Na história dos Símbolos encontraremos dois momentos decisivos: o de desenvolvimento do modelo cristológico em sua função confessional e querigmática e sua posterior união ao modelo trinitário, acrescentando ao nome de cada pessoa divina um atributo, título ou atividade que lhe é própria na história da salvação.

         No primeiro caso, modelo cristológico confessional, temos a união do nome de Jesus com seus títulos. Ficou célebre a identificação dos cristãos a partir do peixe, possibilitado pelo acróstico ICHTHYS (“peixe”, em grego transliterado), letras que formam as primeiras iniciais da fórmula: “Jesus, Cristo (= Messias), Filho de Deus, Salvador”.

Do modelo cristológico querigmático, nosso exemplo mais significativo vem de Inácio de Antioquia. Inácio foi bispo de Antioquia na Síria (atualmente Antakya/Hatay, Turquia). Preso na perseguição do imperador Trajano, foi levado a Roma e ali martirizado por volta do ano de 110. Pelo caminho escreveu algumas cartas. Os críticos reconhecem ao menos 7 como autênticas. Nelas encontramos várias fórmulas cristológicas. Leiamos a da Carta aos Tralianos:

“Sede, portanto, surdos quando alguém vos fala sem Jesus Cristo, da linhagem de Davi, nascido de Maria, que verdadeiramente nasceu, que comeu e bebeu, que foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pilatos, que foi verdadeiramente crucificado e morreu à vista do céu, da terra e dos infernos. Ele verdadeiramente ressuscitou dos mortos, pois o seu Pai o ressuscitou, e da mesma forma o seu Pai ressuscitará em Jesus Cristo também a nós, que nele cremos e sem o qual não temos a verdadeira vida” (9,1-2)

Neste texto de Inácio encontramos reunidos em forma querigmática elementos da tradição neotestamentária, como a confissão de fé de 1Cor 15,3s. Mas possui também acréscimos relevantes. A menção de Maria é uma delas: nascido de ou filho de Maria não aparecia nos querigmas do Novo Testamento. A partir de agora, todos os Credos cristológicos o mencionarão. Alguns quiseram ver aí também a afirmação da concepção virginal (“nascido da Virgem Maria”), mas isso não é claro. Sabemos, por outra parte, que as cartas de Inácio foram retocadas pelo ano de 380, o que possibilita algumas interpretações diversas. Outra menção que se tornará clássica nos Símbolos de Fé será “sob Pôncio Pilatos” (já presente em At 3,13 e 1Tm 6,13). Apenas por curiosidade, será na Carta aos Esmirniotas 8,2 que aparecerá pela primeira vez a expressão “Igreja Católica” para designar a universalidade dos fiéis.

Inácio tinha em vista, também, com esta confissão de fé cristológica, reagir ao docetismo, uma heresia que já encontramos denunciada entre os últimos escritos do Novo Testamento, como em 1Jo 4,2-3: “Nisto reconhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne mortal, vem de Deus; todo espírito que não confessa Jesus não vem de Deus mas do Anticristo”. São escritos contemporâneos aos de Inácio. Referem-se a cristãos que, já mais distantes no tempo dos eventos que envolveram a vida de Jesus, tendem de maneiras e em graus diversos negar a corporeidade de Cristo, a realidade de sua encarnação, sobretudo de sua paixão e morte, insistindo, pelo contrário, que tudo isso não passou de aparência (daí a origem da palavra docetismo, do verbo grego dokéo: “parecer”). Em contrapartida, Inácio usa por quatro vezes a locução adverbial “em verdade” (no nosso texto, “verdadeiramente”). O Credo, desta forma, torna-se uma “regra de fé” para distinguir os verdadeiros cristãos. Em Inácio, portanto, o segundo artigo – o que se refere a Cristo – dos futuros Símbolos de Fé, já está pronto.

A união dos dois modelos, o cristológico com o trinitário, será o acontecimento decisivo para a gênese dos Símbolos de Fé. Ainda estamos no momento antecedente, em que encontramos enunciados que servem como regra da fé, mas já muito próximos dos Símbolos. Justino e Irineu serão testemunhas desse momento, embora não saibamos se são eles os responsáveis por essa “soldagem” dos artigos. Podemos ler um exemplo em Irineu, bispo de Lião, em uma obra escrita por volta do ano 190:

“Eis a regra da nossa fé, o fundamento do edifício e a base da nossa conduta: Deus Pai, incriado, incircunscrito, invisível, único Deus, criador do universo. Tal é o primeiríssimo artigo de nossa fé.

O segundo é o Verbo de Deus, Filho de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor, que apareceu aos profetas segundo o desígnio de sua profecia e segundo a economia disposta pelo Pai; por meio dele foi criado o universo. E no fim dos tempos, para recapitular todas as coisas, [o Verbo] se fez homem entre os homens, visível e tangível, para destruir a morte, para manifestar a vida e restabelecer a comunhão entre Deus e o homem.

E como terceiro artigo, o Espírito Santo, de cujo poder os profetas profetizaram, e os Padres foram instruídos com relação a Deus, e os justos foram guiados no caminho da justiça, e que no fim dos tempos foi difundido de um modo novo sobre a humanidade, por toda a terra, renovando o homem para Deus.” (Demonstração da Pregação Apostólica n.6)

         Uma afirmação desta regra da fé merece ser explicada porque é termo técnico em Irineu: “recapitular todas as coisas”. Irineu a retoma de Paulo, Efésios 1,10. Significa resumir, mas levando à plenitude. Com ela se afirma que é Cristo quem leva à plenitude a obra da salvação, restaurando a unidade do plano de Deus e, por isso, tornando-se o ponto de harmonia do universo.

         O lugar de origem desta regra da fé é a catequese batismal, como Irineu mesmo esclarece no parágrafo seguinte, uma joia da teologia trinitária:

“Por isso, o batismo, nosso novo nascimento, tem lugar para estes três artigos, e nos concede renascer a Deus Pai por meio de seu Filho no Espírito Santo, porque os portadores do Espírito de Deus são conduzidos ao Verbo, isto é, ao Filho, que é quem os acolhe e os apresenta ao Pai, e o Pai lhes dá a incorruptibilidade. Sem o Espírito, é, pois, impossível ver o Verbo de Deus, e sem o Filho, nada pode aproximar-se do Pai, porque o Filho é o conhecimento do Pai, e o conhecimento do Filho se obtém por meio do Espírito Santo. Mas o Filho, segundo a bondade do Pai, dispensa como ministro o Espírito Santo a quem quer, e como o Pai quer.” (Demonstração da Pregação Apostólica n.7)

         A Trindade não aparece em Irineu como fruto de especulação sobre Deus, mas é colhida como fruto maduro da revelação feita ao longo da história da salvação.

         Por fim, nos dois textos citados de Irineu aparece o termo artigo. É a primeira vez na história que o encontramos assim empregado. E será uma aquisição que permanecerá até hoje. O Catecismo Romano o explicava de uma forma tão atraente que, vários séculos depois, o nosso atual Catecismo simplesmente o reproduz:

Estas três partes são distintas, embora interligadas. Segundo uma comparação usada com freqüência pelos Padres, chamamo-las de artigos. Pois da mesma forma que nos nossos membros existem certas articulações que os distinguem e os separam, assim também, nesta profissão de fé, com acerto e razão se deu o nome de artigos às verdades que devemos crer especificamente e de forma distinta (Catecismo Romano 1,1,4; citado por: Catecismo 1983, n.191)

Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo