Egéria: uma monja entre os competentes de Jerusalém no século IV

05 de Outubro de 2020

"Egéria: uma monja entre os competentes de Jerusalém no século IV"

No século XX foi descoberto um manuscrito em que uma mulher relata sua peregrinação por lugares considerados relevantes para o judaísmo e o cristianismo. Provavelmente uma monja, no final do século IV. Escrevia para poder contar em detalhes para suas companheiras o que havia visto e vivenciado em sua viagem. Em português foi traduzido com o título Peregrinação de Egéria (para mais detalhes veja o artigo no Servindo do mês passado).

A preparação imediata para a recepção dos sacramentos da iniciação – batismo, crisma e eucaristia – era feita durante a quaresma e sua recepção, nas solenes celebrações pascais. Os competentes, como eram chamados aqueles que haviam dado seu nome e que foram aceitos, passavam por uma preparação cotidiana, envolvendo celebrações e formações. As qualidades morais já deviam, nesse momento, terem sido trabalhadas. Era uma das condições para terem sido aceitos.

Este período imprimia um ritmo severo. O jejum era uma prática consolidada. Cada pessoa, diz Egéria, deve fazê-lo na medida de suas forças. Alguns grupos, provavelmente de monges, jejuavam a semana toda, alimentando-se apenas uma vez de uma sopa de farinha, aos sábados ou domingos. Em todo caso, os competentes iam de madrugada para as orações matinais e, a cada dia, eram exorcizados e assistiam as catequeses em jejum, menos nos sábados e domingos, que tinham mais atividades litúrgicas. Egéria descreve assim estas catequeses:

“E imediatamente põe-se uma cadeira para o bispo no Martyrium, na igreja maior, e sentam-se todos em volta, perto do bispo, os que estão para serem batizados, tanto os homens quanto as mulheres; também no lugar há os padrinhos e madrinhas, e também todos do povo que querem ouvir entram e sentam, pelo menos os fiéis”

(Peregrinação de Egéria 46,1).

Os simples catecúmenos, ou seja, aqueles que não deram seu nome ou não foram aceitos, não podem participar da catequese, apenas os fiéis, ou seja, os que já são batizados. Estas catequeses duram três horas: das 6 às 9 da manhã. Nelas, o bispo explica inicialmente as Sagradas Escrituras e, depois, o Símbolo, ou seja, o nosso Credo. Tanto as Sagradas Escrituras quanto o Símbolo é primeiro explicado em seu sentido literal e depois espiritual. Como já sabemos através de Cirilo, não se escrevia o Símbolo. Os padrinhos ajudavam os candidatos a memorizá-lo. Na última semana da quaresma, um a um, deveriam passar na frente do bispo e proclamar de memória o Símbolo. Egéria descreve essa “entrega do Símbolo” ao bispo:

“Quando já tiverem transcorridas sete semanas, resta aquela única semana pascal que aqui chamam semana maior, então já chega o bispo de manhã no Martyrium. No fundo da abside, atrás do altar, põe-se uma cadeira para o bispo e aí vão um a um, o homem com seu padrinho e a mulher com a sua madrinha, e entregam o Símbolo para o bispo”

(Peregrinação de Egéria 46,5).

Nesta ocasião o bispo dava as últimas orientações e anunciava as catequeses mistagógicas da semana pascal. Em geral, pensava-se que era melhor vivenciar os ritos primeiro para depois receber uma explicação sobre eles. Como não era pública a administração dos sacramentos, nenhum dos catecúmenos sabia exatamente o que aconteceria.

Estas catequeses eram proferidas em grego, com tradução simultânea para o siríaco, língua do cristianismo de Jerusalém naquela época. Egéria diz que havia sempre alguém capaz de traduzi-las para o latim também. É bom lembrar que a língua do Novo Testamento e das primeiras comunidades cristã é o grego. Mesmo em Roma, o latim só foi adotado nas celebrações no século terceiro. Quanto às cerimônias propriamente ditas, Egéria não escreve nada. Fazia parte do segredo imposto aos iniciados, ou seja, se comprometiam em não revelar nada do que acontecia aos não iniciados, nem mesmo aos catecúmenos.

Egéria narra com riqueza de detalhes, sem entrar no que o silêncio sobre os sacramentos exigia, a Semana Santa. Nesse sentido, é um documento único. Menciono aqui, pela brevidade que o espaço exige, uma curiosidade, lembrando que estamos no século IV. Sobre a devoção à cruz de Cristo na liturgia da Sexta-Feira Santa: “E assim, põe-se uma cadeira para o bispo no Gólgota, atrás da Cruz, que agora está fixada; o bispo senta-se na cadeira; é posta diante dele uma mesa coberta com pano de linho; os diáconos ficam em pé em volta da mesa, e é trazido um relicário de prata dourado, no qual está o santo lenho da cruz; o relicário é aberto e exposto, e põe-se na mesa tanto o lenho da cruz quanto a inscrição” (Peregrinação de Egéria 37,1). A inscrição poderia ser a placa com os motivos da crucificação (Mt 27,37). Egéria continua:

“Depois de ter sido colocado na mesa, o bispo, sentado, aperta com as suas mãos as extremidades do santo lenho; por sua vez, os diáconos que estão de pé ao redor vigiam. De fato, este é assim vigiado porque é costume que, vindo um a um, todo o povo, tanto os fiéis quanto os catecúmenos, inclinem-se à mesa, beijem o santo lenho e sigam adiante. E porque se diz alguém ter cravado, não sei quando, uma mordida, e ter roubado um pedaço do santo lenho, por isso ele agora é guardado pelos diáconos, os quais ficam em pé à volta, para que ninguém, ao chegar perto, ouse novamente proceder assim.

E assim, pois, todo o povo passa, um por um, todos se inclinando, primeiro tocando com a testa e depois com os olhos, a cruz e a inscrição, e assim beijando a cruz, passam adiante, porém ninguém põe a mão para tocá-la” (Peregrinação de Egéria 37,2-3).

Escrito por: Pe. Luiz Antônio Belini