Ambrósio e a Iniciação Cristã em Milão no século IV

01 de Junho de 2020

"Ambrósio e a Iniciação Cristã em Milão no século IV"

Quando Agostinho chegou a Milão para ser mestre de retórica, Ambrosio já era um bispo que gozava de fama. O encontro com Ambrósio irá transformar sua vida, assim como a vida de muitos outros. É o próprio Agostinho quem nos relata este encontro:

         "Assim que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no mundo inteiro como um dos melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras ministravam constantemente ao povo a substância do teu trigo, a alegria do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho. Tu me conduzias a ele sem que eu o soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a ti. (...) Acompanhava assiduamente suas conversas com o povo, não com a intenção que deveria ter, mas para averiguar se sua eloqüência merecia a fama de que gozava, se era superior ou inferior à sua reputação. (...) Eu me encantava com a suavidade de seu modo de discursar..." (Agostinho, Confissões, V,13,23)

         Escutando Ambrósio por causa de sua eloquência, Agostinho irá aos poucos se convencendo da veracidade também do conteúdo de suas pregações. Irá superando alguns dilemas racionais que o impedia de aderir ao cristianismo. Aos poucos abandonará o maniqueísmo e se fará catecúmeno em Milão. Gostaria de poder conversar longamente com Ambrósio sobre suas dúvidas e incertezas, mas Ambrósio estava sempre muito ocupado. O que nos escreve, no entanto, nos ajuda a entender a rotina de trabalho de Ambrósio:

         "Considerava o próprio Ambrósio um homem realizado segundo o espírito do mundo, homenageado pelos poderosos; somente seu celibato parecia-me duro de suportar. (...) Não conseguia fazer-lhe as perguntas que queria e como desejaria, pois dele me separavam numerosas pessoas carregadas de problemas e que recebiam ajuda de seus ouvidos e de sua boca. O pouco tempo que não estava ocupado com elas, Ambrósio o empregava restaurando o corpo com o sustento necessário, ou alimentando a alma com leituras. (...) Muitas vezes, ao entrarmos (pois a ninguém era proibido o ingresso nem precisava anunciar-se), o víamos lendo, sempre em silêncio. (...) Todos os domingos ia escutá-lo quando ele apresentava, com retidão, a palavrada verdade ao povo. E eu me convencia cada vez mais de que podia ser desfeito o nó das astuciosas calúnias com que os meus sedutores envolviam os livros sagrados" (Agostinho, Confissões, VI,3,3)

         Ambrósio nasceu em Tréveros (cidade que atualmente pertence a Alemanha), entre 333 e 340. Sua família pertencia a nobreza romana e seu pai desempenhava ali um alto cargo no Império. Tendo seu pai falecido prematuramente, sua mãe retornou com ele e seus irmãos a Roma. Recebeu uma sólida formação retórica e jurídica. Em 370 tornou-se governador da Ligúria e da Emília, com residência em Milão. Quando em 374 morreu o bispo Auxêncio, aconteceram violentas perturbações entre os cristãos de tendência ariana (condenado como heresia) e os fiéis a Roma. O bispo era eleito pelos cristãos da diocese. Como governador, Ambrósio teve de administrar esta crise, e o fez com tal serenidade e competência que as duas partes o elegeram para o episcopado. Refutou inicialmente, mas acabou aceitando, compreendendo que esta era a vontade de Deus para com ele. O detalhe é que Ambrósio ainda era apenas catecúmeno. Algo comum entre as famílias romanas de sua época, retardar longamente o batismo. Recebeu o batismo e apenas oito dias depois foi sagrado bispo de Milão, provavelmente em 7 de dezembro de 374.

         Ambrósio, sagrado bispo, mudou radicalmente sua vida. Doou seus muitos bens aos pobres; passou a levar uma vida simples e a estudar teologia sob a orientação do presbítero Simpliciano, um sábio, que no leito de morte, Ambrósio (morreu em 4 de abril de 397) indicará como seu sucessor, e assim acontecerá. Ambrósio se dedicará sobretudo à leitura dos Padres gregos. Talvez por isso aquela indicação de Agostinho sobre a preocupação de Ambrósio com a leitura. É perceptível a grande influência sobre ele de Orígenes e de sua exegese alegórica.

         No que se refere a Iniciação Cristã, Ambrósio acompanhava pessoalmente os catecúmenos. Chegaram até nós algumas obras que é um precioso testemunho. Em o Sobre os Mistérios (De Mysteriis), Ambrósio trata do batismo, da crisma e da eucaristia. São catequeses mistagógicas, como as de Cirilo de Jerusalém. Datadas entre 390 e 391, são pronunciadas para os que receberam os sacramentos, na semana seguinte à páscoa. Tendo escrito para publicação, Ambrósio toma o cuidado de omitir o que não deve ser revelado a não ser aos iniciados (determinação de segredo que ficará conhecido posteriormente como "disciplina do arcano"), tais como: as palavras do batismo, da consagração ou do Pai Nosso.

         Duas outras obras, atualmente reconhecidas como de autoria de Ambrósio, mas antigamente contestada, nos dão pormenores importantíssimos sobre a liturgia dos sacramentos. Devem ter sido redigidas para a catequese, com uso privado e não para a publicação, porque não seguem a "disciplina do arcano". E este detalhe, para nós, faz toda diferença. São o Sobre os sacramentos (De sacramentis) e a Explicação do Símbolo (Explanatio symboli ad initiandos). A catequese nesta época compreende, geralmente, a explicação da Escritura e do Símbolo ("Credo"), feita durante a quaresma e a dos sacramentos, feita durante a semana após a páscoa.

         "Quero avisá-los bem do seguinte: o símbolo não deve ser escrito. Deveis repeti-lo mas ninguém o escreva" (Ambrósio, Explicação do Símbolo 9)

         Ambrósio faz uma leitura alegórica das Escrituras, como o fazia Orígenes. Às vezes, é chamada também de tipologia, ou seja, a busca de correspondência entre os dois Testamentos, onde o Antigo apresenta em figura ("tipo"), o que o Novo apresenta em realidade. O texto que fundamenta este tipo de leitura é 1Cor 10,2-6 e, especificamente, 1Cor 10,11: "Estas coisas aconteceram em figura ["tupoi"] e foram escritas para a nossa instrução". Assim, o dilúvio e a passagem pelo Mar Vermelho são figura do batismo cristão. Para eles prefigurava, para nós é realidade (Sobre os Sacramentos VI,20 e VI,23). Um parágrafo pode ilustrar isto. Quando o dilúvio baixou, Noé soltou um corvo primeiro, depois uma pomba. Ambrósio convida a olhar isto com os olhos da fé:

         "A água é o elemento em que a carne submerge para lavar todo pecado carnal. Aí fica sepultado todo crime. O madeiro é aquele no qual foi pregado o Senhor Jesus, quando sofreu por nós. A pomba é o aspecto no qual desceu o Espírito Santo, como aprendeste no Novo Testamento, aquele que te inspira a paz da alma e a tranquilidade do espírito. O corvo é a imagem do pecado que sai e não volta, contanto que se conserve em ti a observância e o exemplo do justo" (Ambrósio, Sobre os mistérios II,11)

         Ambrósio, quando comenta os gestos dos sacramentos, procura responder as dúvidas mais frequentes. Ele não as nega e nem se escandaliza com elas. Principalmente por causa da simplicidade dos ritos e símbolos. Podemos imaginar como alguns catecúmenos ansiavam por serem batizados e esperavam que fosse algo indescritível (não sabiam exatamente o que aconteceria; a explicação vinha após a recepção do sacramento). Depois de uma longa catequese, tinham jejuado e rezado por vários dias:

         "Em seguida, te aproximaste, viste a fonte, viste também o sacerdote junto à fonte. Nem posso duvidar que em teu ânimo não poderia acontecer o que aconteceu naquele sírio Naamã, o qual, embora purificado (entretanto antes duvidava). Por quê? Vou dizer. Escuta.

         Entraste, viste a água, viste o sacerdote, viste o levita. Por acaso, alguém não diria: Isso é tudo? Certamente isso é tudo; verdadeiramente há tudo, onde há total inocência, onde há total piedade, total graça, total santificação. Viste aquelas coisas que pudeste ver com os olhos do teu corpo e com os olhares humanos; não viste aquilo que se realizou, mas o que se vê. São muito maiores aquelas coisas que não se vêem do que as que se vêem, 'porque as coisas que se vêem são temporais, mas as que não se vêem são eternas' (2Cor 4,18)" (Ambrósio, Sobre os sacramentos I,3,9; se referia a Naamã: 2Rs 5)

Escrito por: Pe. Luiz Antônio Belini